Limpar livros de pecados linguísticos. Ou o elogio da estupidez

Opinião

Limpar livros de pecados linguísticos. Ou o elogio da estupidez

7 de março de 2023, 15h19

Por Maria João Marques

*artigo publicado originalmente no jornal português Público


Gravação de cena de funeral de “007, Viva e Deixe Morrer” (1973), em Nova Orleans
Divulgação

Atualmente, os leitores não podem ser confrontados com o que é ofensivo e fora das lentes atuais. Não devem aprender que o mundo nem sempre foi como é, que o quadro de valores das comunidades evolui.

Somerset Maugham, um dos mais celebrados escritores britânicos do século 20, autor de Servidão Humana No Fio da Navalha, publicou, em 1930, The Gentleman in the Parlour. Está traduzido por cá pela Tinta da china, num livro lindo de capa dura verde e preta, como Um Gentleman na Ásia. Lá dentro, Maugham conta-nos uma viagem entre Rangun (então parte da Índia britânica) e Hong Kong (essa possessão exigida aos chineses pelo governo de sua majestade — na altura, Victoria — depois da Primeira Guerra do Ópio, ela própria, de resto, outro exemplo de patifaria europeia).

Somerset Maugham viveu uns bons tempos nas colônias europeias da Ásia e do Pacífico. Tinha o objetivo de poupar dinheiro, que a vida em Londres já então era cara. Aproveitou para escrever prolificamente sobre esses sítios. Li quase tudo de Maugham, quando era adolescente, dessas terras distantes, certamente numa manifestação precoce do meu orientalismo. (E uso “orientalismo” aqui como provocação propositada à revelia de todos os tons condenados por Edward Said. Usualmente escreveria interesse e apreço pela Ásia Oriental e do Sudeste, porque o que o meu “orientalismo” me trouxe foi mesmo a derrocada da minha visão eurocêntrica do mundo. Porém talvez seja hora de começarmos a resgatar a honra de certas palavras, sobretudo se são bonitas.)

Provavelmente tais obras de Maugham estarão pejadas de pecados linguísticos. Não me lembro. Lá pelos anos 1990, estaria menos afinada a exigência moralista — a do mundo e a minha — com a literatura. Contudo, neste Um Gentleman na Ásia, relido há poucos anos, reparei lá para o fim numa bomba atómica para as mentes woke e sensíveis (e burras). Numa viagem de barco, sobre um judeu americano que Maugham considerava insuportável, escreveu “era daquele tipo de judeus que faziam com que o pogrom fosse compreensível”.

O tom da frase (e do livro) é espirituoso, porém desconfio que só não foi alvo das fatwas das hordas wokes que insistem em higienizar livros porque, reconheça-se, estas hordas leem pouco. Ou será que o facto de o judeu de Maugham ser americano, representante de uma empresa de meias (donde, capitalista), torna a alusão ao pogrom aceitável? Toda a gente sabe que há permissão woke para enxovalhar americanos e capitalistas.

Da minha parte, reputo de delícia esta parte do livro. É um magnífico exemplo daquilo que era aceitável escrever em 1930 e se tornou impensável depois da 2ª Guerra Mundial e do Holocausto. Conhecendo-se os campos de concentração, os milhões de judeus gaseados e perseguidos, os guetos nos países ocupados pelos nazis, um crime que perdura até hoje (não só os imbróglios sobre a posse de obras de arte roubadas ou vendidas coercivamente por judeus em fuga como, por exemplo, a maior propensão para depressão dos filhos dos sobreviventes dos campos de concentração), fazer piadas com os pogroms (russos, por sinal) não tem, lá está, piada.

A questão é esta. Se o comentário de Maugham dificilmente seria escrito depois de 1945, desde logo porque os leitores torceriam o nariz com a falta de empatia e de noção, tal não significa que tenha de ser apagado do livro de 1930. Tal como Rangun não deve ser transformado em Yangon (o novo nome da cidade). Nem se deve maçar os leitores introduzindo pelo meio das palavras de Maugham explicações sobre as malfeitorias europeias na China no século 19 (que ainda se fazem sentir na psique e na narrativa da política chinesa; e, por outro lado, tornaram Hong Kong uma cidade deslumbrante e única, que não seria sem o domínio britânico). Ou, pior, falseando o texto original, para não confrontar os demasiado sensíveis leitores com o ignominioso passado colonial.

Isto tudo vem a propósito das recentes decisões de editoras limparem os livros de Roald Dahl e de Ian Fleming, o criador de 007, de certas palavras malditas. No primeiro caso, “gordo” passou a “enorme”, retiraram-se as referências a “mães” e a “pais” — aparentemente ser mãe ou ser pai é um conceito datado e ofensivo para o moderníssimo século 21 — para o genérico “família” ou “parents” (em inglês), e “rapazes” e “raparigas” passaram a “crianças”, que ter sexo também já não fica bem e temos todos de ser fluidos quer queiramos, quer não.

No caso dos livros de 007, foi limpa linguagem racista sobre negros — permanecendo linguagem racista sobre outras etnias e nacionalidades, bem como expressões profundamente sexistas e até relativistas de violência sexual (esta limpeza seletiva, só por si, daria material para várias páginas).

A higienização dos livros escritos há décadas pode ser vista de muitos ângulos. O atropelo à liberdade de expressão dos autores. O desrespeito por um autor que é mudar-lhe as obras sem autorização (já morreram). Eu escolho o ângulo da estupidez dos leitores que não sobrevivem (sem sofrerem vários achaques que lhes periguem a vida dos quatro neurônios funcionais) acaso leiam num livro que há uma personagem gorda, ou um homem minúsculo, ou que um branco fez considerações racistas sobre um negro, ou que há sexismo indecoroso à solta por aí, ou…

Sou do tempo em que se lia livros para aprender, conhecer vidas diferentes, espreitar a natureza humana, saber de culturas de sítios distantes, atormentarmo-nos com injustiças e prisões (metafóricas) que, pessoalmente, desconhecemos. No fundo, para ver o outro. Tanto assim é que ler ficção é um dos melhores treinos para desenvolver a empatia e o pensamento crítico.

Atualmente, presumo, deve ler-se livros para estupidificar. Os leitores não podem ser confrontados com o que é ofensivo e fora das lentes atuais. Não devem aprender que o mundo nem sempre foi como é agora, as circunstâncias políticas e sociais mudam, e o quadro de valores das comunidades evolui. Estão arredados do princípio fundamental da leitura: um texto é sempre construído, e só assim se percebe, dentro do seu contexto.

Ao invés, promovem-se criaturas que nem na literatura de ficção aguentam realidades ofensivas (mas que boa preparação para a vida). Se há pessoas incapazes de ler os livros como foram escritos, melhor que não os leiam e deixem os livros intactos para quem gosta de os ler. O problema não é a linguagem datada de muitos livros. É a vontade, apresentada em nome do bem, de apagar o que não nos agrada. Se não gostam do conteúdo por ser racista, antissemita, machista, colonialista ou com pecados do catecismo woke, há solução fácil: não comprar e não ler. Todas as livrarias têm oferta de livros sobre auras e anjos e parecidos. Com sorte até estão em promoção.

Maria João Marques é colunista do jornal português Público.

Revista Consultor Jurídico, 7 de março de 2023, 15h19

(https://www.conjur.com.br/2023-mar-07/maria-joao-marques-limpar-livros-pecados-ou-elogio-estupidez)

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