Lápis azuis de ontem não podem travestir-se nos linchamentos nas redes de hoje

Opinião

Lápis azuis de ontem não podem travestir-se nos linchamentos nas redes de hoje

7 de março de 2023, 16h23

Por Pedro Norton

*artigo publicado originalmente no jornal português Público

A polêmica é conhecida. De resto, já foi comentada — e bem — pela Maria João Marques. E a história conta-se num ápice: os livros infantis do escritor Roald Dahl vão ser reescritos para que possam entrar, devidamente purificados, no panteão imaculado da literatura admissível. Doravante nenhuma criança verá o seu futuro destruído pela contemplação inopinada dos traumatizantes adjetivos “feio” ou “gordo” (Ettore Scola que se cuide).


Reprodução

Não vou repetir os argumentos de Maria João acerca da infantilização e estupidificação de leitores. Não vou deter-me na discussão sobre a integridade das obras de arte. Não vou perder muito tempo com o exercício — terrivelmente tentador — da ridicularização destes pequenos Savonarollas de trazer por casa. Não vou sequer centrar-me no tema mais vasto dos ataques à liberdade de expressão de que esta fobia de ofender é uma perigosa antecâmara. Não porque o debate não seja atual e relevantíssimo.

Há seguramente muito para dizer, sobre a metastização deste tipo de ideias censórias na academia (e a feminista Camille Paglia tem-no dito com conhecimento de causa e particular clareza: “A universidade deixou de ser um local de debate de ideias, tendo-se tornado um infantário onde a idade adulta parece ser adiada até à eternidade”). Assim como, na linha de Stuart Mill ou de Jefferson, há muito para dizer acerca da imprescindível ligação entre essa mesma liberdade de expressão, o consequente funcionamento de um “mercado de ideias” e a existência de democracias plenas, funcionais e substantivas. Mas, por ora, e por manifesta falta de espaço, prefiro deter-me numa discussão mais circunscrita. A tudo isto hei de regressar um dia.

Prefiro insistir, dizia eu, mais em concreto, num ângulo argumentativo que já explorei e que tem sido um ângulo morto em muitas das discussões sobre o direito a ofender. Refiro-me ao insanável paradoxo que encerra qualquer cultura de silenciamento e de higienização da ofensa. Para o ilustrar, gosto de recorrer, imagine-se, a um velho “amigo” marxista. Num livrinho que vivamente recomendo (Direito a Ofender, a Liberdade de Expressão e o Politicamente Correto), o jornalista Mick Hume expõe o argumento de forma particularmente convincente (e peço desde já desculpa pela longa citação):

“No clima intelectual moderno, por vezes parece que ofender os outros é o pior crime do mundo. A coisa é apresentada como uma tentativa progressista de proteger as pessoas de palavras que as magoam, mas tornou-se uma forma disfarçada de insistir que há demasiada liberdade de expressão. Pode parecer uma boa ideia viver num mundo acolhedor e maternal de insipidez inofensiva. O problema é que exigir o direito a não ser ofendido é negar a toda a gente a liberdade de ofender a ética e as opiniões aceites do tempo em que se vive. E, sem essa subversiva liberdade de questionar o inquestionável — o direito a ofender —, a sociedade talvez nunca tivesse sequer chegado ao ponto em que os direitos antirracistas e das lésbicas e dos gays, bissexuais e transgênero se tornaram aceitáveis no debate público.”

De fato, a luta das feministas pelo direito de voto nos Estados Unidos não teria culminado na 19ª emenda da Constituição em 1920 sem, pelo caminho, ofender a moral misógina vigente. A conquista dos direitos civis nos anos 1950 não teria sido possível sem atentar contra a moral supremacista branca que, nos estados americanos do sul, era, então, a lei de fato. O apartheid não teria entrado em colapso sem ofender a moral racista que foi a moral de Estado na África do Sul até 1994. E a luta pela legalização do casamento homossexual não teria sido possível sem confrontar o lado mais bafiento da moral católica ainda presente no Portugal do século 21.

Ora, tal como no passado não teria sido boa ideia abdicar da “subversiva liberdade de questionar o inquestionável” ou capitular perante a inviolabilidade da moral vigente, não é obviamente salutar entregar hoje as chaves da moralidade insuscetível de ser ofendida a um qualquer grupo de exaltados pós-modernos com crescente poder no espaço público e que se julgam guardiães da nova virtude. Os lápis azuis de ontem não podem travestir-se nos linchamentos nas redes de hoje.

Ninguém no seu perfeito juízo exaltará com um mundo de ofensas gratuitas. Mas a verdade é que conceder o direito a ofender as morais vigentes a cada momento é provavelmente um preço ínfimo a pagar para garantir que continuamos a fazer o nosso lento e imperfeito caminho em direção a sociedades mais justas.

Pedro Norton é colunista do jornal português Público.

Revista Consultor Jurídico, 7 de março de 2023, 16h23

(https://www.conjur.com.br/2023-mar-07/pedro-norton-elogio-direito-ofender)

Deixar um comentário

HTML tags:
<a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <s> <strike> <strong>