O dia em que eu bati na mesa

Por Ivandro Coêlho, jornalista.

Há 15 anos eu me encontrava na câmara de vereadores de Chapadinha, sentado do lado esquerdo da galeria, na primeira fila das cadeiras destinadas ao público. Com o coração trespassado de dor, assistia a algumas pessoas discursarem. Não ouvia direito o que elas diziam, pois na minha cabeça mil coisas se passavam ao mesmo tempo. Os pensamentos não batiam. Em vão tentava buscar uma explicação para o que estava acontecendo. Nada fazia sentido.

A única coisa que eu sabia é que era uma sessão extraordinária, cujo motivo jamais imaginei que algum dia pudesse ser aquele: uma homenagem à minha mãe, que havia partido, mas que ainda estava ali, de corpo presente. Vendo algumas daquelas pessoas falarem, sentia um misto de tristeza e revolta, pois sabia que boa parte do que aqueles senhores diziam era mera formalidade. E que, se pudesse decidir, ela mesma jamais aceitaria aquilo.

Porém, um dos oradores me comoveu. Não pelo que disse, mas justamente pelo que não disse. Ele começou a discursar como todos os outros, mas não conseguiu terminar a fala. Interrompeu seu discurso com uma batida na mesa do púlpito, descendo profundamente emocionado. Aquilo me tocou porque eu sabia que era verdadeiro. Durante muitos anos fui testemunha da amizade entre ele e minha mãe, Neném Coêlho. Do respeito que tinham um pelo outro, mesmo em momentos difíceis e tendo posições políticas diferentes.

Muitas vezes o vi chegar na minha casa para conversar com minha mãe. Algumas para aconselhar. Outras para pedir conselho. E outras ainda para organizar algum ato ou reunião. Esse era o Dr. José da Costa Almeida. Ou “Zé Almeida”, como a gente falava. Pois foi com surpresa e choque que recebi, antes de ontem, a notícia de que ele tinha partido.

Esse fato me trouxe imediatamente a lembrança daquela cena na Câmara, que me marcaria para sempre. Num gesto instintivo, dei uma pequena batida na mesa de estudo em que eu estava lendo. Minha surpresa foi maior porque, em meados de fevereiro, tinha estado com ele, devido a um probleminha de saúde que tive assim que cheguei ao Maranhão, vindo do Rio.

Por intermédio de uma amiga, Conceição Bergman, fui me consultar com ele lá no hospital São Francisco. E o que era para ser uma simples consulta, que não duraria mais do que 15 ou 20 minutos, acabou se transformando num agradável bate-papo que terminou no final da tarde. A ponto de a secretária dele, desavisada, lá pelas tantas abrir a porta do consultório bruscamente, pensando que ele já havia ido embora, como era de costume.

Falamos de tudo um pouco. Ele me contou sobre a família, os filhos, o dia a dia de sua vida profissional. Também falou de alguns fatos novos e de personagens da política local que eu não conhecia, pois não estou acompanhando. Depois recordamos amigos em comum. Foi aí que lhe confidenciei o meu interesse de um dia fazer uma entrevista com ele, em que pudesse falar livremente sobre vários assuntos ligados à nossa cidade.

Disse a ele que o considerava uma memória viva de Chapadinha. Que era importante não deixar isso se perder. E que não era de hoje que nutria o desejo de fazer algo nesse sentido com outros personagens importantes, como o padre Neves, seu Eduardo e o Dr. Sebastião, mas que infelizmente o tempo não permitiu. Todos já tinham partido. Ao final da conversa, ele concordou. Ficamos de marcar um outro encontro depois. Também não deu tempo.

Foi sem dúvida uma grande perda para a nossa cidade.  Zé Almeida Conhecia como poucos a “alma” do povo de Chapadinha. Sabia os modos, o comportamento, os interesses, as virtudes e as fraquezas de cada um dos que ele tinha contato. Ciência aprendida em vários anos atuando como médico – desses que ainda conversam cara a cara com os pacientes -, mas também nas perambulações pela praça, mercado municipal, câmara, enfim, por todos os cantos da cidade.

Para mim, uma de suas maiores virtudes era seu espírito cosmopolita. A capacidade de transitar pelos mais diferentes grupos sociais. Zé Almeida era o tipo do político que poderia se reunir tanto com militantes radicais de esquerda como com o mais ferrenho conservador. Em todos os espaços que ia tinha o que dizer, embora soubesse também escutar – coisa rara hoje em dia. Seu forte era a experiência acumulada.

Se tinha defeitos? Claro. Quem não os tem? Não vou aqui tratá-lo como uma figura etérea, abstrata. Que bom que ele era como cada um de nós, de carne e osso, embora com suas manias. Por falar nisso, um dos defeitos que eu mais gostava nele era o apreço pelos livros e pela leitura. Sim, porque num país de Youtubers, influenciadores digitais e adoradores de armas, gostar de livro é um grande defeito. E este ele possuía em demasia.

Nunca me esqueci de quando, há muitos anos, eu redigi o “Manifesto do capiroto”, um folheto de apresentação de um bloco carnavalesco idealizado por mim, pelo Marcos Lobo e pelo Alexandre Pinheiro, e que depois viraria o bloco “Espantalho”. Fiz o texto influenciado por três leituras: “O Romance da Pedra do Reino”, de Ariano Suassuna; “Viva o povo Brasileiro”, de João Ubaldo Ribeiro; e “Gramática Expositiva do Chão”, do poeta Manoel de Barros. Um dia, quando estávamos conversando, ele me perguntou se no manifesto não havia traços da obra do João Ubaldo. Respondi que sim, e ali ele ganhou ainda mais minha admiração.

Naquele instante pude ver que, por trás daquela figura simples, que andava de sandálias havaianas e camisa aberta até o peito, havia um homem culto, inteligente e perspicaz. Dizem que algumas vezes ele era ríspido com as pessoas. Comigo nunca foi. Pelo contrário, sempre me tratou com respeito e consideração.

Para além dessas miudezas, queiram ou não, Zé Almeida é parte importante da nossa história política e social. História enraizada no nosso imaginário e que se eternizou nos versos daquela música cantada aos quatro ventos pelo povo de Chapadinha há muitos anos: “É Zé Almeida aqui, é Zé Almeida acolá….”.

 

3 comentários em “O dia em que eu bati na mesa”

Nony | em: 07/07/2020 às 14:08

Maravilhosa a tua homenagem Ivandro, obrigada por essa manifestação.

JCarvalhais | em: 08/07/2020 às 13:27

Com virtudes e defeitos. assim era o nosso (Dr.) Zé Almeida. Nunca se apagarão as Memórias! Permanecerão sempre… a Saudade e uma Gratidão imensas.

Marinqlva | em: 08/07/2020 às 20:59

Maravilhoso e merecido texto para Dr José Almeida. Amigo querido. Um abraço Ivandro.

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