Vamos falar de reflexões que libertam com Markus Gabriel

‘A ideologia é de um tipo de fim do mundo’, diz o filósofo Markus Gabriel

Autor de ‘Por que o mundo não existe’ propõe acesso irrestrito a verdades ‘transfinitas’

POR ARNALDO BLOCH

O filósofo alemão Markus Gabriel: é na divergência e no contexto, e não na convergência e no consenso, que se pode atingir a verdade © Volker Lannert Originalfilename: D5V_7086.jpg – Volker Lannert / Volker Lannert

RIO — Um dos expoentes do novo realismo, corrente filosófica vanguardista, o alemão Markus Gabriel, da Universidade de Bonn, virou best-seller ao lançar “Por que o mundo não existe”, livro em que apresentou a tese de que todas as coisas, materiais ou pensadas, podem ser compreendidas e serem verdadeiras, ou ao menos objetivas, em diversos campos de sentido, mas nunca reunidas num lugar que englobe todas elas. Assim, existiriam vários mundos e, jamais, um só. Virou inimigo número um da pós-modernidade (no que toca a tudo ser ilusório) e de nomes cultuados, vivos ou mortos, como Stephen Hawking, Deleuze, Nietzsche e Descartes. Em seu novo livro, “O sentido da existência” (Civilização Brasileira), defende que só na divergência e no cruzamento de diversos mundos pode-se encontrar um caminho ético, que o consenso é a morte de tudo e que a pós-modernidade está superada. Nesta entrevista em português, por telefone, direto de Haia (Holanda), o poliglota idealista alemão fala sobre síndrome do Fla x Flu, afirma que todos são filósofos e que há um caminho revolucionário para cada um estar mais certo de si, do mundo externo e da verdade, em busca de um planeta mais justo.

Você defende a ideia de que “tudo existe”, menos o mundo. O que é tudo, então?

Existe muita coisa. Existe o Brasil, uma árvore na Amazônia, a Alemanha, o número sete, um sonho, as leis da física e da moral, a ideia de um unicórnio. Tudo aparece para nós em campos de sentido múltiplos. O que não existe é um lugar onde tudo está ao mesmo tempo, o “mundo”.

Mas se você pensa nesse lugar, então esse lugar existe.

Aí é que está: se neste momento estou pensando num lugar que engloba tudo, “o mundo”, esse objeto do meu pensamento é “menos” que o mundo que o inclui. Então, esse “todo” não é um objeto. Isso é importante porque no momento em que percebermos que esse “todo” não existe, colocamo-nos numa situação mais abrangente, com mais objetos e riqueza de sentidos.

Você não estaria falando do infinito?

A realidade tem mais a forma do infinito do que a de um objeto. Mas não é o infinito da matemática, e sim uma série de objetos bem distintos. 2 + 1 = 3, certo? Porém, 2 gotas de água + 1 gota de água não é igual a 3 gotas de água. O Rio, uma cidade, ou o GLOBO, uma entidade social, são objetos vagos. Não dá pra ter uma teoria matemática sobre isso. Por isso, falo de campos de sentidos em que aparecem objetos “transfinitos”.

Você diz que o universo descrito pela Ciência é apenas uma parte do mundo, e não o todo. Mas o pensamento onde estão os sentidos não nasce nesse universo, não “está” nele?

Há muito mais objetos, materiais ou não, do que os que a Física e as Ciências Naturais descrevem, e não há nada de sobrenatural no que digo. Não é possível uma teoria biológica que descreva todo o pensamento e as mecânicas de raciocínio, pois estes não seguem regras estritamente lógicas. São regras sui generis, caso a caso. O universo é só uma província. O problema é que na visão do mundo contemporâneo existe essa fantasmagoria de que é o universo abrangeria tudo.

Mas, insisto: o ser não apareceu no universo?

Desde a Grécia antiga, o ser humano achava que existia um lugar que abrange tudo. “Ser”, “cosmo” são palavras gregas para designar um lugar onde tudo tem lugar. Isso definiu o ser humano até nossa época. Por isso, na nossa época, a ideologia é de um tipo de fim do mundo.

Refere-se à pós-modernidade?

A pós-modernidade é a negação da filosofia. Ela diz que tudo é uma alucinação gigante, tudo é ideologia, construção social. O novo realismo diz que podemos conhecer como são as coisas em si e não só os fenômenos. Há muitos objetos reais, e podemos conhecê-los nas suas essências.

Essa ideia rompe com Descartes e o popular “Penso, logo existo”.

“Matrix”, filme de sucesso, radicaliza esse ceticismo cartesiano. Se é assim, como podemos saber que nossas opiniões acerca do mundo externo, da política, dos amigos, são verdadeiras? Como acertar se estamos alucinando? Ora, já sabemos muita coisa. No plano ético, sabemos que demasiada desigualdade gera violência. Isso é um fato objetivo que não tem nada a ver com opinião. Não podemos fugir ao domínio dos fatos, mesmo os subjetivos: a subjetividade é um fato também. Mas está na moda achar que não há fatos.

Seus arqui-inimigos são figuras da moda: Deleuze, por exemplo.

Eu digo, como piada, que meus inimigos são o Quartier Latin, de Paris, inteiro. É que os maiores pensadores pós-modernos eram franceses nietzschianos em certo grau. Deleuze, Foucault, Lacan. Então, talvez Nietzsche seja meu arqui-inimigo. Mas eu o respeito. Porque ele conhece muito bem os problemas do seu pensamento, é honesto. Mas o construtivismo está mais para uma moda. Por exemplo, os físicos que discutem se o universo é uma simulação de uma inteligência artificial são construtivistas.

Você critica duramente a teoria do tudo, com a qual a Física tenta explicar todos os fenômenos. Mas a teoria do multiverso, que fala de múltiplos cosmos, faz lembrar seu pensamento.

Sim, só que a pluralidade deles é distante, “lá fora”, totalizadora, como a relatividade de Einstein. Na minha ontologia, procuro localizar a pluralidade onde já estamos.

E onde estamos?

Qualquer lugar onde estejamos são muitos lugares. Um país complexo como o Brasil tem rostos, regiões, gente, visões do que deve ser o Brasil. O Brasil são essas visões transfinitas. O multiverso está aqui, não lá fora. Repito: não há nada sobrenatural nisso. Há agora alguém no Japão fazendo algo que nem imagino, enquanto falamos de filosofia aqui, ao telefone. O cara no Japão, com os seus pensamentos, já está num “universo paralelo” e até em outro tempo (risos). Não dá para “somar”, totalizar, nossa conversa e os pensamentos dele num todo.

O transfinito é infinito?

É mais do que o infinito. Ora, até na Matemática há vários tipos de infinitos, com regras para somas. E na minha ontologia, abre-se uma cadeia de infinitos objetos em infinitos campos de sentido que se relacionam em diferentes categorias. Não há uma regra que os governe. É ainda mais. Um “mais” qualitativo, e não quantitativo, porque não se pode contar exatamente. O matemático alemão Georg Cantor, que inventou a teoria dos conjuntos, faz uma distinção entre o infinito da matemática, sempre quantitativo, e o chamado “absoluto transmitido”, um infinito qualitativo.

No Brasil existe uma expressão, a síndrome do Fla x Flu, que remete ao fato de as pessoas não mais trocarem ideias, mas tentarem vencer com argumentos, ou adotar um, para “resolver” a parada.

O Fla x Flu é extremamente difundido, e vem de um mal-entendido sobre a natureza da democracia. É um tipo de debate que dá a impressão de que é democrático, de que não é dogmático, mas que, na verdade, dá lugar à mentira. Um cara como Donald Trump, por exemplo, só pode funcionar num contexto em que os fatos já não têm valor. Por isso tenho uma visão da “democracia com verdade, com fatos”. Nosso modo de democracia hoje pode parecer bacana, relaxado, mas é uma falsa maneira de chegar à paz social, à justiça. Precisamos ajudar nossos amigos, nossas famílias a ver a verdade. Nem sempre a ilusão é uma boa coisa.

Mas como saber qual é a verdade num mundo em que especialistas passam o dia inteiro dizendo o que é a verdade?

Precisamos de um pensamento bem informado, estruturado, e que não seja o pensamento do “especialista”. Esse pensamento é o da filosofia. De certa maneira, todos os seres são filósofos, mas não sabem. Todos querem saber se somos agregados de célula ou imortais. Essas questões a respeito de quem somos são filosóficas. Precisamos é de mais filosofia no espaço político.

Essas questões, no senso comum, são colocadas para soluções imediatas, e não para reflexão.

Pois é. Mas na filosofia trata-se de uma reflexão que, em princípio, não tem nenhuma meta além da reflexão, trocar ideias em torno de uma questão sem querer nada com isso, o que é um conceito importante da liberdade: a ideia de um pensamento sem fim que nos liberta, que produz conhecimento e autoconhecimento. É uma forma de liberdade e de resistência. Por isso o grande gênio da Filosofia, Sócrates, resistiu ao sistema político da democracia grega ao insistir que ele não sabia nada.

Como dar às pessoas acesso à reflexão numa dinâmica em que elas não têm tempo?

Um critério para uma sociedade mais justa deveria incluir o direito humano a ter tempo na vida para discutir a questão de quem somos. Quem não tem sequer tempo para isso jamais poderá viver uma “boa vida”. Para mim é um imperativo categórico que haja espaço de educação e reflexão para todos. Sou universalista radical nesse sentido. Mas é difícil chegar com os pressupostos econômicos em vigor.

A internet é um bom lugar para revoluções?

Já vimos uma tentativa, a da Primavera Árabe. Mas foi um grande fracasso. O problema dos movimentos digitais é que as regras, a seleção da informação, ainda são efetuadas na Califórnia. A forma lógica com que a informação está sendo trocada é definida por um grupo que tem interesse econômico. São plataformas boas para uma melhor forma de comunicação global que poderiam impulsionar grandes transformações. Mas o uso econômico é em demasia.

 

Fonte: https://oglobo.globo.com/cultura/livros/a-ideologia-de-um-tipo-de-fim-do-mundo-diz-filosofo-markus-gabriel-20292426

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