Lula, a fênix, os abutres e as obrigações com o futuro

Lula foi eleito pela terceira vez presidente do Brasil, um dos principais países democráticos.

A menção sobre ser o Brasil importante como um país democrático é porque presidente com três ou mais mandatos existe em dezenas de países, mas nenhum deles eleitos em eleições livres e democráticas como as do Brasil desde 1988.

Ser presidente três vezes, nessas circunstâncias, não é pouca coisa. Muito menos para quem tem a origem do Lula, um faminto retirante nordestino que foi criado apenas pela mãe.

Das vezes que votei para presidente, todas foram para o Lula e uma vez, na reeleição, para Fernando Henrique Cardoso. José Sarney, FHC e Lula, três grandes presidentes que o Brasil teve e que, nas eleições desse ano, estavam juntos.

Lula teve uma vida de mutilações.

Foi mutilado quando perdeu a paternidade pelo abandono do pai, quando teve de abandonar a terra natal escorraçado pela fome, quando não mereceu do Estado a educação necessária e obrigatória, quando foi vítima da Lava Jato e, a partir dela, quando ela matou a esposa dele, quando o humilhou para poder participar do velório de um irmão, quando o privou de velar um neto falecido, quando o encarceram por longos dias.

Muita dor: o abandono paterno, a fome, a própria história sendo incinerada, a morte da esposa provocada por atos do Estado e a proibição dos últimos abraços, carinhos e beijos no neto falecido.

Lula tem um carisma verdadeiro, não há dúvida. Mas o que sempre me levou a votar em Lula foi o seu olhar de tristeza, alegria, esperança e perdão. Alegria, esperança e perdão inabaladas por tantas tristezas vividas.

A Lava Jato, com a luxuosa contribuição de juízes de tribunal federal, de uma turma do STJ e do STF, “matou” Lula e, sobre seu cadáver, nasceu o Bolsonaro presidente do Brasil e, com esse fato, toda a sua estética e ética (a ditadura deveria ter matado e torturado mais; mulher feia não merece ser estuprada; uma filha mulher é uma fraquejada; o covid-19 é apenas uma gripezinha etc.).

Aliás, em janeiro de 2018 eu disse o que o STF constatou anos depois e que hoje todos sabem: os processos contra Lula era apenas uma farsa envolta em mentiras, ilegalidades e teratologias (https://pormim.com.br/2018/01/caso-triplex-pecoabsolvo-lula/ ).

Mas, tal qual a fênix, das cinzas do cadáver insepulto, exsurge o Lula. De novo presidente e, diga-se, com muito legitimidade, pois teve de vencer contra todos os abusos que foram possíveis de praticar para que o eleito fosse o Bolsonaro. É preciso registrar.

O Lula “morto” foi a matéria prima para alimentar abutres que se lambuzaram sobre seu cadáver. Para mencionar os mais destacados, há quatro anos, Bolsonaro, Zema, Wilson Witzel. Agora, Moro e Dallagnol. Diria Argh? Não, urgh, “Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia”.

É verdade que na vida anterior Lula alimentou outros bichos nocivos. Na vida ressuscitada já vejo alguns, que bem conheço, a se aproxima dele a dizer que não quer nada, só ajudar, mas que no fundo quer muito e até tudo, o lugar do Lula. É o ciclo da vida, e da morte.

Lula, para essas pessoas-abutres, reserve a misericórdia e o perdão. Não no sentido de esquecimento, mas para se afastar do ressentimento, do ódio e da vingança. Deixe que a justiça cuide deles. Aliás, as vitórias, processuais e eleitoral, já é uma justiça. Deixe para os tribunais e para a história o julgamento deles.

Depois de tudo isso, sem esquecer o passado, é caminhar, para frente, para o futuro.

Do Lula atual espero que leve adiante as promessas de três refeições diárias para todos os brasileiros, sobretudo os pobres, especialmente aqueles invisíveis que a pandemia do covid fez aparecer nas filas dos bancos para receber os “600”, esses “todos pretos ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres e pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos”.

Mas Lula, “a gente não quer só comida”, quer também educação e saúde. Quer que o tal bolo prometido aos brasileiros, nunca dividido como deve ser, seja-o.

Veja, Lula, o que o SUS, tão menosprezado, na pandemia, foi “o nosso ‘gigante pela própria natureza’, cujas células são os trabalhadores da saúde que, tal como o SUS, são belos, fortes, impávidos colossos. Que o futuro do SUS espelhe essa grandeza.”.

E quando muito estão a ser contra o Estado Social proposto – precisa ter superávit, olha o teto, olha a regra de ouro, bla, bla, bla – durante a pandemia do covid “Os governos tiveram de se ‘endividar’. Não adiantou querer tributar, pois não se tinha como pagar. Não havia renda, o patrimônio evaporou. As reservas tiveram de ser usadas, afinal, reservas, devem servir para isso. Ao invés das leis do livre comércio, das suas reservas, presente estava somente o Estado para conceder créditos para as empresas, subsídios para manutenção de empregos, dinheiro distribuído para o povo sobreviver, subsídios para a pesquisa e produção de vacinas etc. Vejam só, tudo isso para poder salvar a economia que, segundo os teóricos do estado mínimo, deveria ser entregue ao livre mercado. Como diz Roger Scruton, “as verdades mais evidentes também são as mais difíceis de explicar.”, pois como explicar que o mercado dá conta de tudo se, novamente, foi ele absolutamente incapaz e o Estado é que foi o senhor da resolução dos problemas, inclusive os do mercado/iniciativa privada.”.

Pois é. Dinheiro público é que salvou a humanidade.

Lula, para fazer o certo que deve ser feito não precisa desse nhenhenhém de emenda para furar ou não furar o teto, pra lá, medida provisória, pra cá. Cuidado, tudo isso pode levar o teu governo para o quinto dos infernos, um lugar bem longe de onde você quer chegar, ou pelo menos diz que quer.

Lula, dar uma olhada na Constituição, esquece o que essa gente ai da tal transição inventa para mostrar serviço, aliás, um mau serviço, quiçá a serviço do mal. Pela presunção de inocência, só posso cogitar de ignorância, mas certamente que entre eles há abutres.

Mas “vamos lá” na Constituição. Começa pela lembrança do discurso do Ulisses. Atentai: “A Constituição mudou (…), mudou quando quer mudar o homem cidadão. E é só cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa.”.

Para usar uma frase de uma personagem de um dos contos de “Norte das Águas”, “o desengano da vista é ver”.

É isso Lula, veja a Constituição. Atentai.

Lula, veja que ironia do destino. Para fazer o certo que deve ser feito basta que cumpra o que Bolsonaro prometia todo dia que iria fazer: respeitar as quatro linhas da Constituição.

É verdade Lula, está tudo lá, escrito na Constituição tem mais de três décadas.

Lula, três refeições diárias, educação e saúde para todos os brasileiros é concretizar o mínimo do que preceitos e princípios da Constituição determinam como obrigações do Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário). A Constituição diz que a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da existência do Brasil; que são objetivos fundamentais construir uma sociedade justa e solidária e erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos; que todos são iguais em direitos e obrigações; que são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer; que o salário mínimo do brasileiro deve ser capaz de atender as necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social.

Pronto, Lula, não precisa evocar todo o texto da Constituição, basta que se faça cumprir esses direitos estabelecimentos entre os artigos primeiro e sexto. Não há lacuna a ser preenchida pelo nhenhenhém. A Constituição transborda em direitos e é suficiente para três refeições diárias, educação e saúde.

Lula, não há dignidade da pessoa humana na fome, na ignorância e na doença.

Lula, no novo caminhar, não queira ser um super homem público, chame os outros do legislativo e do judiciário para também cumprirem as suas obrigações, para que se concretize esse mínimo previsto na Constituição. Mas chame com veemência, para não parecer leniente ou que apenas joga para a plateia.

Não desperdice a experiência, o conhecimento e a inteligência de José Sarney e FHC. Eles são fundamentais.

Paro por aqui, meu caro Lula. Espero não voltar a escrever sobre fazer o certo que deve ser feito. Cuidado com as escolhas da sua equipe. Um abraço fraterno. Desejo a ti grande saúde e que tenha Vontade Potência. No diz de Nietzsche, que “Desse isolamento doentio, do deserto desses anos de experimento, é ainda longo o caminho até a enorme e transbordante certeza e saúde, que não pode dispensar a própria doença como meio e anzol para o conhecimento, até a madura liberdade do espírito, que é também auto-domínio e disciplina do coração e permite o acesso a modos de pensar numerosos e contrários — até a amplidão e refinamento interior que vem da abundância […] até o excesso de forças plásticas, curativas, reconstrutoras e restauradoras, que é precisamente a marca da grande saúde”.

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