Domingo pascal e o Sermão do Bom Ladrão

Neste domingo de páscoa – antecedido por uma Semana Santa reveladora de tantos pecados, vícios e vexames – convido os poucos frequentadores desse blog, e também os muitos que não, se assim quiserem, a refletir, com o padre Antonio Vieira, acerca desses acontecimentos.

Reflitamos, portanto, a partir de alguns trechos do Sermão do Bom Ladrão, que bem se adequam à quadra que hoje vivemos:

“(…)

(…) Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza; o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres. Mas Sêneca, que sabia bem distinguir as qualidades e interpretar as significações, a uns e outros definiu com o mesmo nome.

Quando li isto em Sêneca, não me admirei tanto de que um filósofo estóico se atrevesse a escrever uma tal sentença em Roma, reinando nela Nero; o que mais me admirou, e quase envergonhou, foi que os nossos oradores evangélicos, em tempo de príncipes católicos e timoratos, ou para a emenda, ou para a cautela, não preguem a mesma doutrina. Saibam estes eloqüentes mudos que mais ofendem os reis com o que calam, que com o que disserem, porque a confiança com que isto se diz é sinal que lhes não toca e que se não podem ofender; e a cautela com que se cala é argumento de que se ofenderão, porque lhes pode tocar.

(…)

A porta por onde legitimamente se entra ao ofício, é só o merecimento. E todo o que não entra pela porta, não só diz Cristo que é ladrão, senão ladrão e ladrão: Fur est latro. E por que é duas vezes ladrão? Uma vez porque furta o ofício, e outra vez porque há de furtar com ele. O que entra pela porta poderá vir a ser ladrão, mas os que não entram por ela já o são. Uns entram pelo parentesco, outros pela amizade, outros pela valia, outros pelo suborno, e todos pela negociação. E quem negocia não há mister outra prova: já se sabe que não vai a perder. Agora será ladrão oculto, mas depois ladrão descoberto, que essa é, como diz S. Jerônimo, a diferença de fur a latro.

(…)

E como os que trazem às costas semelhantes sujeitos estão tão pagos deles, que muito é que digam e informem — posto que sejam tão incapazes — que lhes sobejam merecimentos por cima dos telhados. Como não podem alegar façanhas de quem não tem mãos, dizem virtudes e bondades. Dizem que, com seus procedimentos, cativa a todos. E como não havia de cativar, se os comprou?

(…)

(…)Pois, se eles furtam com os ofícios, e os consentem e conservam nos mesmos ofícios, como não hão de levar consigo ao inferno os que os consentem? (…)

(…)

(…) Diz mais que, para privar a este ladrão do ofício, bastou somente a fama, sem outras inquirições: Et hic diffamatus est apud illum (24), porque se em tais casos houverem de mandar buscar informações à Índia ou ao Brasil, primeiro que elas cheguem, e se lhes ponha remédio, não haverá Brasil nem Índia. Não se diz, porém, nem se sabe quem fossem os autores ou delatores desta fama, porque a estes há-lhes de guardar segredo o senhor inviolavelmente, sob pena de não haver quem se atreva a o avisar, temendo justamente a ira dos poderosos. Diz mais, que mandou vir o delatado diante de si: Et vocavit eum, porque semelhantes averiguações, se se cometem a outros, e não as faz o mesmo senhor por sua própria pessoa, com dar o ladrão parte do que roubou, prova que está inocente. Finalmente, desengana-o e notifica-lhe que não há de exercitar jamais o ofício, nem pode: Jam enim non poteris villicare, porque nem o ladrão conhecido deve continuar o ofício em que foi ladrão, nem o senhor, ainda que quisesse, o pode consentir e conservar nele, se não se quer condenar.

(…)

Esta doutrina em geral, pois é de Cristo, nenhum entendimento cristão haverá que a não venere. Haverá, porém, algum político tão especulativo que a queira limitar a certo gênero de sujeitos, e que funde as exceções no mesmo texto. O sujeito em que se fez esta execução, chama-lhe o texto villico: logo, em pessoas vis, ou de inferior condição, será bem que se executem estes e semelhantes rigores, e não em outras de diferente suposição, com as quais, por sua qualidade e outras dependências, é lícito e conveniente que os reis dissimulem. Oh! como está o inferno cheio dos que com estas e outras interpretações, por adularem os grandes e os supremos, não reparam em os condenar! Mas, para que não creiam a aduladores, creiam a Deus, e ouçam. (…)Fez-se diligência exata, e achou-se que um, chamado Acã tinha furtado uma capa de grã, uma regra de ouro, e algumas moedas de prata, que tudo não valia cem cruzados. Mas quem era este Acã? Era porventura algum homem vil, ou algum soldadinho da fortuna, desconhecido e nascido das ervas? Não era menos que do sangue real de Judá, e por linha masculina, quarto neto seu. Pois, uma pessoa de tão alta qualidade, que ninguém era ilustre em todo Israel, senão pelo parentesco que tinha com ele, há de morrer queimado por ladrão? E por um furto, que hoje seria venial, há de ficar afrontada para sempre uma casa tão ilustre? Vós direis que era bem se dissimulasse; mas Deus, que o entende melhor que vós, julgou que não. Em matéria de furtar não há exceção de pessoas, e quem se abateu a tais vilezas, perdeu todos os foros. (…)

(…) mas quando o caso é de furto, não se lhes pode dissimular a ocasião, mas logo logo devem ser privadas do posto. (…) se juntamente são ladrões, de nenhum modo se pode consentir nem dissimular que continuem no posto e lugar onde o foram, para que não continuem a o ser.

(…)

(…) um rei prudente e justo, e os que têm estas qualidades — como devem ter, sob pena de não serem reis — nem admitem em seu serviço, nem fiam a sua fazenda a sujeitos que lha possam roubar: (…)

(…)

(…) Os teus príncipes são companheiros dos ladrões. — E por quê? São companheiros dos ladrões, porque os dissimulam; são companheiros dos ladrões, porque os consentem; são companheiros dos ladrões, porque lhes dão os postos e os poderes; são companheiros dos ladrões porque talvez os defendem, e são, finalmente, seus companheiros, porque os acompanham e hão de acompanhar ao inferno, onde os mesmos ladrões os levam consigo.

(…) há príncipes que correm com os ladrões e concorrem com eles. Correm com eles, porque os admitem à sua familiaridade e graça, e concorrem com eles, porque, dando-lhes autoridade e jurisdições, concorrem para o que eles furtam (…) Dessas mesmas ladroíces, que tu vês e consentes, hei de fazer um espelho em que te vejas — e quando vires que és tão réu de todos esses furtos, como os mesmos ladrões, porque os não impedes, e mais que os mesmos ladrões, porque tens obrigação jurada de os impedir, então conhecerás que tanto, e mais justamente que a eles, te condeno ao inferno. (…)

(…)

(…) a fazenda do particular é sua: a do rei não é sua, senão da República (…)

(…)

(…) Mas como estes pescadores do alto usaram de redes varredouras, use-se também com eles das mesmas. Se trazem muito, como ordinariamente trazem, já se sabe que foi adquirido contra a lei de Deus, ou contra as leis e regimentos reais, e por qualquer destas cabeças, ou por ambas, injustamente. Assim se tiram da Índia quinhentos mil cruzados, de Angola duzentos, do Brasil trezentos, e até do pobre Maranhão mais do que vale todo ele. (…) Dos governadores que mandava a diversas províncias o Imperador Maximino, se dizia com galante e bem apropriada semelhança, que eram esponjas. (…)

(…) Quem tomou o alheio fica sujeito a duas satisfações: à pena da lei e à restituição do que tomou. Na pena, pode dispensar o rei como legislador; na restituição não pode, porque é indispensável.

(…)

(…) não estou arrependido. Se a alguém pareceu que me atrevi a dizer o que fora mais reverência calar, respondo com Santo Hilário: Quae loqui non audemus, silere non possumus: O que se não pode calar com boa consciência, ainda que seja com repugnância, é força que se diga. (…)

(…)”

1 comentário em “Domingo pascal e o Sermão do Bom Ladrão”

Neto | em: 16/04/2017 às 13:56

Nada tao atual…rs

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