Condenações não criminais (cíveis e administrativas) não geram inelegibilidade

Vou repetir para que não reste dúvida: condenações não criminais (cíveis e administrativas) não geram inelegibilidade.

Para ser mais preciso digo que as inelegibilidade decorrentes de condenações judiciais ou administrativas previstas na Lei das Inelegibilidades ou Ficha Limpa (Lei Complementar nº. 64/90), ressalvados os casos de condenação criminal (e mais as por motivo de idade, nacionalidade, residência, idioma, instrução, capacidade civil ou mental), não tem efeitos para fins de inelegibilidade.

Os casos que mais têm repercussão e são objeto da maioria das ações de impugnação de candidatura são as condenações por improbidade; condenações eleitorais por abuso de poder econômico ou político, compra de voto, doação, captação ou gastos ilícitos de recursos de campanha e conduta vedada aos agentes públicos em campanhas eleitorais; e rejeição de contas.

Dito de outra forma, o que se tem é que, salvo os casos de condenação criminal expressamente previstos na Lei das Inelegibilidades (Lei Complementar nº. 64/90), todas as demais hipóteses previstas na mencionada lei complementar como casos de inelegibilidade decorrentes de condenações judiciais ou administrativas não tem juridicidade (ou não deveria).

Inelegíveis, atendidas as regras vigentes/válidas no Brasil, são somente aqueles condenados conforme preceitua a letra “e” do inciso I do art. 1º. da Lei Complementar nº. 64/90. Veja-se o rol:

e) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena, pelos crimes:

  1. contra a economia popular, a fé pública, a administração pública e o patrimônio público;
  1. contra o patrimônio privado, o sistema financeiro, o mercado de capitais e os previstos na lei que regula a falência;
  1. contra o meio ambiente e a saúde pública;
  1. eleitorais, para os quais a lei comine pena privativa de liberdade;
  1. de abuso de autoridade, nos casos em que houver condenação à perda do cargo ou à inabilitação para o exercício de função pública;
  1. de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores;
  1. de tráfico de entorpecentes e drogas afins, racismo, tortura, terrorismo e hediondos;
  1. de redução à condição análoga à de escravo;
  1. contra a vida e a dignidade sexual; e
  1. praticados por organização criminosa, quadrilha ou bando;

Ou seja, condenações por improbidade e eleitorais e rejeição de contas não podem ou não deveriam provocar inelegibilidade.

O que ora se afirma tem por base preceito da Convenção Americana de Direitos Humanos – CADH (Pacto de São José da Costa Rica) que torna as inelegibilidades não criminais absolutamente contrárias aos postulados dessa “declaração de direitos”, dentre tantas outras, ratificada pela República Federativa do Brasil.

Quanto aos tratados, declarações e convenções, José Jairo Gomes diz que:

             “Tratados e convenções internacionais incluem-se entre as fontes do Direito Eleitoral. (…)

(…)

             Nos termos do artigo 5º, § 2º, da Constituição, os direitos e garantias nela expressos não excluem outros decorrentes ‘dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte’.

             Por sua vez, o § 3º do artigo 5ºda Constituição (incluído pela EC nº 45/2014) dispõe que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos equivelarão às emendas constitucionais se ‘forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros’. (…)

            (…)

             Vale lembrar que os direitos políticos são direitos humanos fundamentais.

            (…)”

            No ponto, cabe dizer que o correto seria a declaração de inconvencionalidade das inelegibilidades decorrentes de condenação não criminais ou rejeição de contas previstas na Lei da Ficha Limpa ou Lei das Inelegibilidades.

Mesmo que não se chegue a tanto (a declaração de inconvencionalidade), não se pode ignorar que há preceito expresso da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969) – Pacto de San José da Costa que, no mínimo, surte eficácia suspensiva de efeito paralisante (stricto sensu) contra a condenação as inelegibilidades não criminais/rejeição de contas.

Com efeito, o item 23, 1, “a”, “b” e “c” e item 2 do Pacto de San José da Costa determina que todo cidadão tem direito pleno à elegibilidade e, quando cuida de condenações a restringir a elegibilidade, o faz apenas nos casos de condenação criminal. Vide os dispositivos que falam por si sós:

Artigo 23 – Direitos políticos

  1. Todos os cidadãos devem gozar dos seguintes direitos e oportunidades:

a) de participar da condução dos assuntos públicos, diretamente ou por meio de representantes livremente eleitos;

 b) de votar e ser eleito em eleições periódicas, autênticas, realizadas por sufrágio universal e igualitário e por voto secreto, que garantam a livre expressão da vontade dos eleitores; e

 c) de ter acesso, em condições gerais de igualdade, às funções públicas de seu país.

2. A lei pode regular o exercício dos direitos e oportunidades, a que se refere o inciso anterior, exclusivamente por motivo de idade, nacionalidade, residência, idioma, instrução, capacidade civil ou mental, ou condenação, por juiz competente, em processo penal.

            Do site do STF (http://portal.stf.jus.br/textos/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaInternacional&pagina=legilacao_internacional_anotada) colhe-se algumas decisões da Corte IDH que cuidam da matéria. Vide:

“Em relação à suposta violação ao direito de ser eleito, a Corte indicou que “[o] ponto central do presente caso reside nas sanções de inabilitação impostas ao Sr. López Mendoza por decisão de um órgão administrativo em aplicação do art. 105 do LOCGRSNCF, que o impediu de registrar sua candidatura para cargos de eleição popular”. (…) a Corte entendeu que o caso deveria ser resolvido por meio da aplicação das disposições do art. 23 da Convenção Americana, porque são sanções que impuseram uma clara restrição ao direito de ser eleito, sem se ajustar aos requisitos aplicáveis de acordo com o parágrafo 2, relacionado a uma “condenação, por um juiz competente, em processo penal”. Para o Tribunal, “[n] nenhum desses requisitos foi cumprido (…) uma vez que o órgão que impôs tais sanções não era um “juiz competente”, não havia “condenação”, e as sanções não foram aplicadas como resultado de um “processo penal”. Portanto, a Corte considerou que, embora no presente caso o senhor López Mendoza “tenha conseguido exercer outros direitos políticos (…), está plenamente provado que ele foi privado do sufrágio passivo, isto é, do direito de ser eleito”, razão pela qual “decidiu que o Estado violou os arts 23.1.b e 23.2, combinado com o art. 1.1 da Convenção Americana”. [Corte IDH. Caso López Mendoza vs. Venezuela. Resumo oficial da sentença de mérito, reparações e custas de 1º-9-2011. Tradução livre.

“200. O direito a ter acesso às funções públicas em condições gerais de igualdade protege o acesso a uma forma direta de participação na elaboração, implementação, desenvolvimento e execução das diretrizes políticas estatais através de funções públicas. Entende-se que estas condições gerais de igualdade se referem tanto ao acesso à função pública, por meio de eleição popular, como por nomeação ou designação.” [Corte IDH. Caso Yatama vs. Nicarágua. Exceções preliminares, mérito, reparações e custas. Sentença de 23- 6-2005.]

 

Ademais, há decisão do STF que, em caso de conflito de “lei” interna com a Pacto de São José da Costa Rica, aplicou o entendimento que aqui se defende. Vide:

“… diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na Constituição, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante.

Nesse sentido, é possível concluir que, diante da supremacia da Constituição sobre os atos normativos internacionais, a previsão constitucional da prisão civil do depositário infiel (art. 5o, inciso LXVII) não foi revogada pelo ato de adesão do Brasil ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7o, 7), mas deixou de ter aplicabilidade diante do efeito paralisante desses tratados em relação à legislação infraconstitucional que disciplina a matéria, incluídos o art. 1.2 87 do Código Civil de 1916 e o Decreto-Lei n° 911, de 1o de outubro de 1969.

Tendo em vista o caráter supralegal desses diplomas normativos internacionais, a legislação infraconstitucional posterior que com eles seja conflitante também tem sua eficácia paralisada. É o que ocorre, por exemplo, com o art. 652 do Novo Código Civil (Lei n° 10.406/2002), que reproduz disposição idêntica ao art. 1.287 do Código Civil de 1916.” (STF – RECURSO EXTRAORDINÁRIO 466.343-1 – Relator: Ministro César Peluso)

 

Importante que se diga, da força normativa da CADH, que o efeito paralisante foi aplicado frente a dispositivo da Constituição da República e, para fins do presente texto, a aplicação é contra legislação ordinária editada posteriormente à internalização da CADH.

Para se rememorar o caso, transcreve-se algumas partes das manifestações dos Ministros na votação:

“(…)

 Ministro Gilmar Mendes……

“(…)

 Em outros termos, os tratados sobre direitos humanos não poderiam afrontar a supremacia da Constituição, mas teriam lugar especial reservado no ordenamento jurídico. Equipará-los à legislação ordinária seria subestimar o seu valor especial no contexto do sistema de proteção dos direitos da pessoa humana.

 (…)

 Portanto, diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na Constituição, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante.

 (…)

 Tendo em vista o caráter supralegal desses diplomas normativos internacionais, a legislação infraconstitucional posterior que com eles seja conflitante também tem sua eficácia paralisada. É o que ocorre, por exemplo, com o art. 652 do Novo Código Civil (Lei n° 10.406/2002), que reproduz disposição idêntica ao art. 1.287 do Código Civil de 1916.

 Enfim, desde a adesão do Brasil, no ano de 1992, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7o, 7), não há base legal para aplicação da parte final do art. 5o, inciso LXVII, da Constituição, ou seja, para a prisão civil do depositário infiel.

 (…)

 Em conclusão, entendo que, desde a adesão do Brasil, sem qualquer reserva, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7o, 7), ambos no ano de 1992, não há mais base legal para prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. 0 status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil, dessa forma, torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de adesão. (…)

 (…)”

 Celso de Mello

 “(…)

 O respeito e a observância das liberdades públicas impõem-se ao Estado como obrigação indeclinável, que se justifica pela necessária submissão do Poder Público aos direitos fundamentais da pessoa humana.

 O conteúdo dessas liberdades – verdadeiras prerrogativas do individuo em face da comunidade estatal – acentua-se pelo caráter ético-jurídico que assumem e pelo valor social que ostentam, na proporção exata em que essas franquias individuais criam, em torno da pessoa, uma área indevassável à ação do Poder.

 (…)

 Torna-se evidente, assim, que esse espaço de autonomia decisória, proporcionado, ainda que de maneira limitada, ao legislador comum, pela própria Constituição da República, poderá ser ocupado, de modo plenamente legítimo, pela normatividade emergente dos tratados internacionais em matéria de direitos humanos, ainda mais se se lhes conferir, como preconiza, em seu douto voto, o eminente Ministro GILMAR MENDES, caráter de “supralegalidade”, ou, então, com muito maior razão, se se lhes atribuir, como pretendem alguns autores, hierarquia constitucional.

 (…)

 Posta a questão nesses termos, a controvérsia jurídica remeter-se-á ao exame do conflito entre as fontes internas e internacionais (ou, mais adequadamente, ao diálogo entre essas mesmas fontes), de modo a se permitir que, tratando-se de convenções internacionais de direitos humanos, estas guardem primazia hierárquica em face da legislação comum do Estado brasileiro, sempre que se registre situação de antinomia entre o direito interno nacional e as cláusulas decorrentes de referidos tratados internacionais.

 (…)

 As razões invocadas neste julgamento, no entanto, Senhora Presidente, convencem-me da necessidade de se distinguir, para efeito de definição de sua posição hierárquica em face do ordenamento positivo interno, entre convenções internacionais sobre direitos humanos (revestidas de “supralegalidade”, como sustenta o eminente Ministro GILMAR MENDES, ou impregnadas de natureza constitucional, como me inclino a reconhecer), e tratados internacionais sobre as demais matérias (compreendidos estes numa estrita perspectiva de paridade normativa com as leis ordinárias).

 Isso significa, portanto, examinada a matéria sob a perspectiva da “supralegalidade”, tal como preconiza o eminente Ministro GILMAR MENDES, que, cuidando-se de tratados internacionais sobre direitos humanos, estes hão de ser considerados como estatutos situados em posição intermediária que permita qualificá-los como diplomas impregnados de estatura superior à das leis internas em geral, não obstante subordinados à autoridade da Constituição da República.

 (…)

 Vale registrar, neste ponto, a lição de GILMAR FERREIRA MENDES, INOCÊNCIO MÁRTIRES COELHO e PAULO GUSTAVO GONET BRANCO (“Curso de Direito Constitucional”, p. 670/671, item n. 9.4.4, 2007, IDP/Saraiva), cuja análise e compreensão da função tutelar dos tratados internacionais, própria e co-natural, em matéria de liberdades públicas, à vocação protetiva inerente ao Direito internacional contemporâneo, põe em perspectiva o decisivo papel que se atribui, hoje, em tema de direitos humanos, às convenções internacionais, culminando por reconhecer-lhes eficácia inibitória de diplomas normativos, que, impregnados de qualificação infraconstitucional, com elas se mostrem colidentes:

 (…)

 Reconheço, no entanto, Senhora Presidente, que há expressivas lições doutrinárias – como aquelas ministradas por ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO TRINDADE (“Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos”, vol. I/513, item n. 13, 2a ed., 2003, Fabris), FLÁVIA PIOVESAN (“Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional”, p. 51/77, 7a ed., 2006, Saraiva), CELSO LAFER (“A Internacionalização dos Direitos Humanos: Constituição, Racismo e Relações Internacionais”, p. 16/18, 2005, Manole) e VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI (“Curso de Direito Internacional Público”, p. 682/702, item n. 8, 2ª ed., 2007, RT) , dentre outros eminentes autores – que sustentam, com sólida fundamentação teórica, que os tratados internacionais de direitos humanos assumem, na ordem positiva interna brasileira, qualificação constitucional, acentuando, ainda, que as convenções internacionais em matéria de direitos humanos, celebradas pelo Brasil antes do advento da EC nº 45/2004, como ocorre com o Pacto de São José da Costa Rica, revestem-se de caráter materialmente constitucional, compondo, sob tal perspectiva, a noção conceitual de bloco de constitucionalidade.

 (…)

 É interessante observar que ANDRÉ RAMOS TAVARES (“Reforma do Judiciário no Brasil pós-88: (Des)estruturando a Justiça”, p. 47/48, item n. 3.2.2.5, 2005, Saraiva), além de atribuir qualificação constitucional aos tratados internacionais de direitos humanos cujo processo de incorporação ao ordenamento interno tenha observado o “iter” procedimental previsto no § 3º do art. 5º da Constituição, também sustenta que as convenções internacionais sobre idêntica categoria temática, celebradas pelo Brasil em data anterior à da promulgação da EC nº 45/2004, foram recebidas com força, autoridade e valor de normas constitucionais:

 Cezar Peluso

 Em relação aos casos futuros e a eventual caso posto perante o novo Código Civil, já antecipo, para excluir a terceira alternativa, minha posição de que vou reconhecer caráter supralegal ou caráter constitucional ao Tratado.

 E, mais. Gostaria de invocar – penso que não se lhe dá a devida importância no pensamento jurídico princípio da evolução normal das sociedades que, desde o “Sistema de Ciência Positiva do Direito”, PONTES DE MIRANDA definia como lei da diminuição do Quantum despótico, segundo a qual também os ordenamentos jurídicos tendem a ir reduzindo, no curso da História, a esfera do poder despótico estatal em favor da dilatação do âmbito dos direitos individuais e das liberdades. E essa lei, induzida do fato histórico de que a violência tende a diminuir através da civilização, não admite retrocesso, no sentido de que tudo aquilo que é incorporado pela Constituição à ordem jurídica em termos de redução do quantum despótico não pode, salvo por ato revolucionário, ser restabelecido, ressuscitado, como retorno a estado anterior à redução da margem de poderes do Estado.

 Carlos Brito

 Vossa Excelência me permite? Quero apenas lembrar que a observação do Ministro Gilmar Mendes, segundo a qual os tratados celebrados antes da Emenda nº 45 se incorporam ao Direito brasileiro com o qualificativo da supralegalidade, atendem à dogmática constitucional porque não se pode esquecer de que o fundamento de validade dos tratados é a Constituição Federal. Eles se incorporarão ao nosso Direito nos termos da Constituição Federal.

 Cezar Peluso

 Eu estava até recentemente algo hesitante em relação à taxinomia dos tratados em face da nossa Constituição, mas estou seguramente convencido, hoje, de que o que a globalização faz e opera em termos de economia, no mundo, a temática dos direitos humanos deve operar no campo jurídico. Os direitos humanos já não são propriedade de alguns países, mas constituem valor fundante de interesse de toda a humanidade.

 Celso de Mello

 Deveremos interpretar a convenção internacional e promover, se for o caso, o controle de convencionalidade dos atos estatais internos ou domésticos, em ordem a impedir que a legislação nacional transgrida as cláusulas inscritas em tratados internacionais de direitos humanos.

 Gilmar Mendes

 O Supremo Tribunal Federal acaba de proferir uma decisão histórica. O Brasil adere agora ao entendimento já adotado em diversos países no sentido da supralegalidade dos tratados internacionais sobre direitos humanos na ordem jurídica interna.

 (…)”

 

            E nem se pode evocar a ADI 4578, porquanto nesta não se debateu inelegibilidade segundo os parâmetros da CADH, ou seja, na ADI 4578 não se cuidou dessa matéria.

Cumpre acrescentar que, recentemente, o Ministro Roberto Barroso, na ARE 1.050.40, decidiu por admitir e levar para julgamento do STF a compatibilidade de outro preceito constitucional (que também trata de matéria de direito eleitoral) com a regra do art. 23 da CADH, a demonstrar que há fortes razões jurídicas no ponto específico para se questionar as inelegibilidades decorrentes de condenações judiciais criminais ou administrativas. Vide:

“11. Nessas circunstâncias, o exame da viabilidade constitucional de candidaturas independentes (sem filiação partidária) parece ser uma das questões mais relevantes e de maior impacto político, social, econômico e jurídico para o país que essa Corte poderia examinar. É que o reconhecimento das candidaturas avulsas pode desbloquear o acesso do cidadão comum à política, ampliar a concorrência eleitoral e, com isso, reforçar a legitimidade do sistema político e sua credibilidade aos olhos da população. 12. Não desconheço a existência de jurisprudência nesta Corte mencionando a exigência de filiação partidária como condição de elegibilidade[6]. No entanto, como observado pelos recorrentes, não há na literalidade do texto do art. 14, § 3º, da Constituição vedação expressa à candidatura independente. Mais do que isso: o que o dispositivo em questão prevê é apenas a exigência da filiação partidária “na forma da lei”. (…)13. Na visão dos recorrentes, se cabe à lei regulamentar a filiação partidária como condição de elegibilidade e se o Pacto de São José da Costa Rica (Decreto 678/1992) impede que o direito político dos cidadãos de concorrerem em eleições seja limitado com base em critérios diversos daqueles previstos em seu art. 23, a decisão judicial que impõe a filiação partidária em toda e qualquer hipótese viola o status supralegal reconhecido aos tratados. A discussão da candidatura avulsa posta nestes termos é inédita perante a Corte. [STF. ARE 1.054.490 QO, rel. min. Roberto Barroso, P, j. 5-10-2017, DJE de 9-3-2018, Tema 974.]

 

Veja-se parte do voto do Ministro quando tratou da repercussão geral (reconhecida unanimemente pelo STF) da matéria:

“(…)

  1. Na visão dos recorrentes, se cabe à lei regulamentar a filiação partidária como condição de elegibilidade e se o Pacto de São José da Costa Rica (Decreto nº 678/1992) impede que o direito político dos cidadãos de concorrerem em eleições seja limitado com base em critérios diversos daqueles previstos em seu art. 23, a decisão judicial que impõe a filiação partidária em toda e qualquer hipótese viola o status supralegal reconhecido aos tratados. A discussão da candidatura avulsa posta nestes termos é inédita perante a Corte.
  1. Há, de fato, jurisprudência consolidada no Supremo Tribunal Federal acerca do status supralegal do Pacto Internacional da Costa Rica[7]. Nos autos do RE 466.343, e em situação muito semelhante àquela ora examinada, o Supremo mitigou o alcance da norma constitucional que previa a possibilidade de prisão por dívida do depositário infiel (CF/88, art. 5º, LXVII), em virtude da proibição de prisão por dívida constante do Pacto. A Corte afirmou, então, que muito embora a norma internacional não pudesse revogar o dispositivo constitucional, seu caráter supralegal tinha o efeito de paralisar a legislação infraconstitucional sobre a matéria, sustando a possibilidade de tal prisão na prática. Constou, ainda, da ementa do julgado que, em tal hipótese, a Constituição deveria ser, tanto quanto possível, interpretada à luz da Convenção. Confira-se:

 (…)

  1. O entendimento acima está pacificado no Supremo Tribunal Federal. E é com base no mesmo raciocínio que os recorrentes afirmam que a decisão recorrida viola a jurisprudência desta Corte. Trata-se, a meu ver, de interpretação plausível do Pacto de São José da Costa Rica, que possibilita o reconhecimento da existência de repercussão geral.

 

Ora, se o Pacto de San José da Costa é de tal importância que pode impactar preceitos da Constituição da República, podendo até mesmo modificar todos os parâmetros dos sistemas político e eleitoral (o que se observa é que, por toda a Constituição da República, o funcionamento da engenharia das eleições, a existência de coligações, o funcionamento dos parlamentos etc., tudo tem como núcleo os partidos políticos), o que se dizer do impacto que ele pode provocar na legislação ordinária pátria, na Lei das Inelegibilidades?

Pode até não se gostar do que aqui se expõe, mas a realidade é que temos uma regra válida e vigente, e que é superior hierarquicamente, que tornam injurídicas as inelegibilidades decorrentes de condenações não criminais ou administrativas previstas na Lei da Ficha Limpa, inelegibilidades estas que, reconheço, tantos, ou quase todos, os brasileiros gostam.

Sei que, concretamente, tais inelegibilidades têm sido aplicadas ignorando absolutamente essa regra do Pacto de San José da Costa, o que é grave e melancólico para um povo cuja Constituição diz que “Todo o poder emana do povo”, mas que seus parlamentares criam leis que são contrárias a direitos humanos estabelecidos na CADH (“(…) é o principal tratado internacional do sistema interamericano de direitos humanos. (…)”) e, para piorar, que o poder judiciário do país dar aplicação concreta a estas leis.

Infeliz, portanto, o povo que se deixar tutelar por parlamentos e judiciário que se prestam a descumprir tratados internacionais de direitos humanos.

A questão, portanto, é relevante, ainda não foi enfrentada pelo STF e merece e deve ser decidida a fim de dizer se as inelegibilidades não criminais afrontam ou não o que disposto no item 23, 1, “a”, “b” e “c” e item 2 do Pacto de San José da Costa.

De toda sorte e para finalizar, afirmo o meu convencimento de que todas as inelegibilidades decorrentes de condenações não criminais e administrativas previstas na legislação brasileira são incompatíveis com a CADH e, por isso inconvencionais. Não obstante, o que concretamente tem ocorrido é que tem prevalecido o contrário no âmbito da justiça eleitoral, o que termina por nos “obrigar”, os advogados, a ajuizar impugnação com base em lei inconvencional nos casos de inelegibilidades não criminais, o que beira à teratologia e litigância de má-fé que só não o são porque a justiça eleitoral decide exatamente contra o Pacto de San José da Costa.

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