O adiamento tardio das Eleições de 2020. O jeitinho não tem jeito?

No mês de março desse ano publiquei um artigo[1] que falava da necessidade de adiamento das eleições municipais de 2020. O artigo foi publicado em 14 de março.

Pouquíssimas pessoas manifestaram, expressamente, concordância com o dito no dito.

Não sou especialista em pandemias e virologia, nem tampouco tenho expertise de como realizar os procedimento administrativos de um processo eleitoral de forma segura para a democracia e para a saúde.

A despeito disso, a leitura que fiz de tudo que se publicou acerca da pandemia do covid-19, isso lá em meados de março, deixava clarividente que não seria possível a realização das eleições em outubro. Eu disse, lá no 14 de março, que “A considerar que a volta à normalidade é possível depois de três meses de isolamento (segundo análises e projeções científicas e medidas legais adotadas pelo governo federal), temos que este tempo de normalidade volta a se apresentar no mês de julho. Isso numa perspectiva muito otimista, pois há projeções de que o fim do isolamento social necessário somente deve ocorrer em agosto (o pico de infecção seria em junho ou julho).”.

Naquele momento o que se apresentava era uma total ausência de atenção/atuação por quem tem obrigação de defender a realização de eleições periódicas e hígidas (Congresso Nacional, OAB etc.). Segundo a Constituição da República, o Brasil é um Estado Democrático de Direito que, por isso mesmo, e também por força da Constituição, requer vigília constante para que ocorram eleições sem máculas, afinal “(…) eleições autênticas, pluralistas, periódicas, transparentes e com processo eleitoral normal e hígido, é que são a vida, a moeda (a economia) e a saúde da democracia.”.

O TSE, por meio de um Grupo de Trabalho, disse, em 17 de abril de 2020, em resposta à indagação “o TSE tem condições necessárias para a realização das eleições em outubro próximo? (…)”, que “(…) o Grupo de Trabalho conclui que a Justiça Eleitoral, até o presente momento, tem condições materiais para a implementação das eleições no corrente ano”.

A partir da inação de todos os legitimados a dar solução para a situação e da certeza do TSE de que era possível realizar eleições em outubro, foram surgindo proposta de prorrogação de mandatos, unificação das eleições para todos os mandatos eletivos e, a Justiça Eleitoral, passou a criar “leis” para preencher o vazio de regras para possibilitar o exercício de direito pelos cidadãos, partidos e pré-candidatos no cumprimento das etapas do processo eleitoral (o calendário eleitoral), todo ao estilo do jeitinho brasileiro.

Quando já vencidas várias etapas do calendário eleitoral, o Senado Federal, após provocação do TSE, no final do mês de junho, aprovou emenda constitucional para adiar as eleições.

A OAB, somente depois da aprovação da emenda constitucional pelo Senado, é que apareceu (quiçá para dizer que existe) e, alvissaras, concorda com o adiamento das eleições.

No dia primeiro de julho, hoje, a Câmera dos Deputados aprovou/ratificou a emenda originária do Senado (fez algumas alterações corretas, já que o texto aprovado no Senado dada poder para o TSE legislar) e, a final, a emenda deve ser promulgada.

O adiamento, como defendo desde março, é correto e necessário e, sobretudo, faz justiça à democracia, mas, vem tardiamente e, como se diz comumente, justiça tardia é falha.

Eu não queria que me dessem ouvidos. Não tenho pretensões de saber mais que todos aqueles que deveriam, com antecedência, sugerir/provocar e adiar as eleições pelos meios constitucionalmente adequados. Queria apenas que dessem ouvidos à realidade objetiva ou ao que dizia a ciência, até porque não foi por “geração espontânea”, mas exatamente por ter interpretado/compreendido o que diziam os sinais/sentidos da realidade objetiva e da ciência é eu que disse, repita-se, nos idos de março, que o adiamento das eleições era necessário.

O que temos, portanto, é que o correto foi feito, entretanto, porque tardiamente, ocorreu a falha de que várias etapas importantes do processo eleitoral (do calendário eleitoral) foram inconstitucional devorados pela omissão desses todos já mencionados.

Com efeito, como tinha mencionado no texto de 14 de março:

“(…)

Com o fim do isolamento social em julho ou agosto, a realização de convenções, registro de candidatura, propaganda e votação estariam incólumes. Mas como ficará tudo que poderia ter sido feito a partir do dia 20 de março até julho ou agosto? Restará, não tenho dúvida, irremediavelmente vulnerada a normalidade e a higidez do processo eleitoral, porquanto terá ocorrido prejuízo irreparável para aqueles que pretendiam mudar de partido e de domicílio eleitoral, para a fiscalização e auditoria dos sistemas eleitorais, para a realização do Teste de Confirmação do Data, para o alistamento, transferência e revisão pelo eleitor, para as prévias partidárias, para a propaganda intrapartidária, dentre outros.

Dentre o que restou inviabilizado nesse período de distanciamento social está a possibilidade de realização da pré-campanha, que é de especial importância no processo eleitoral, faculdade esta que pode ocorrer e ser praticada até o dia em que o pré-candidato se torne candidato registrado.

É nessa fase que os pré-candidatos se fazem conhecer pelos eleitores. Tanto isso é verdade e importante para o processo eleitoral que a Lei das Eleições, a Lei 9504/97, foi alterada para diminuir em quase metade o período de campanha eleitoral e proibir muitos meios de propaganda e, para compensar, acrescentou outras possibilidades de condutas na pré-campanha.

Em razão do necessário isolamento social, a pré-campanha ficou totalmente inviabilizada, pois os pré-candidatos e seus partidos, tal como permitido pelo art. 36-Acaputincisos I VII e §§ 1º. e 2º., da Lei 9504/97, desde o mês de março, não podem realizar reuniões, encontros, seminários, congressos, debates etc.; para apresentar a pretensa candidatura, as qualidades pessoais dos pré-candidatos, exposição de plataformas e projetos políticos; para tratar da organização dos processos eleitorais, discussão de políticas públicas, planos de governo ou alianças partidárias visando às eleições; para divulgar ideias, objetivos e propostas partidárias; a realização de prévias partidárias e a respectiva distribuição de material informativo; a divulgação dos nomes dos filiados que participarão da disputa e a realização de debates entre os pré-candidatos; participação em programas de rádio e televisão e, em qualquer desses eventos, pedir apoio político e a divulgação da pré-candidatura, das ações políticas desenvolvidas e das que se pretende desenvolver.

Sem que tudo isso possa ser realizado concretamente (a pré-campanha), processo eleitoral normal e hígido não há. Processo eleitoral sem ajuntamento de gente, conversas cara a cara, é apenas um arremedo de processo eleitoral.

Doutro lado, não existirá eleições pluralistas, num estado democrático de direito, com mitigação de direitos fundamentais, porquanto não haverá igualdade entre as pessoas que se candidatarem pela primeira vez e os que já estão na vida pública e/ou são “famosas” (art. 5caput, da CF), além dos claros prejuízos em razão do afastamento social inviabilizar a incidência do princípio da legalidade (poder fazer pré-campanha), e dos direitos a manifestação do pensamento e à informação, de locomoção, de reunião, de associação, do devido processo eleitoral,  (incisos IIIVVIXIVXVXVIXVII e LIV do art. 5 da CF).

Igualmente estará vulnerado o Pacto de San José da Costa Rica porque, conforme preceitua o art. 23I“a” a “c”“Todos os cidadãos devem gozar dos seguintes direitos e oportunidades: a) de participar da condução dos assuntos públicos, diretamente ou por meio de representantes livremente eleitos; b) de votar e ser eleito em eleições periódicas, autênticas, realizadas por sufrágio universal e igualitário e por voto secreto, que garantam a livre expressão da vontade dos eleitores; e c) de ter acesso, em condições gerais de igualdade, às funções públicas de seu país.”.

Realidade é que, com o Codiv-19 a dominar as ruas e a provocar o afastamento das pessoas, não há como imaginar eleições com normalidade e legitimidade como pretende e determina o § 9º. do art. 14 da Constituição da República, pois mais da metade do processo eleitoral, a pré-campanha por exemplo, simplesmente não terá ocorrido.

Também entendo que para dar cumprimento ao que determinam a Constituição e a Lei das Eleições, a partir do dia que for definido para a realização das eleições, devem ser fixados novos prazos para filiação, mudança de domicílio etc., ou seja, deverá ser editado novo calendário eleitoral, até porque cada etapa e data do processo eleitoral é definido a partir do dia das eleições. Sem isso estar-se-á diante de uma eleição ilusória, sem o devido processo legal eleitoral, a igualdade de chances entre partidos e candidatos e manifesto prejuízo às minorias etc.

(…)”

         O jeitinho não tem jeito? Acredito que sim. Parafraseando Chico Buarque, acredito que o Brasil ainda vai cumprir seu ideal, ainda vai dar um jeito no jeitinho e cumprir a Constituição.

[1] https://pormim.com.br/2020/04/pandemia-do-covid-19-adiar-ou-nao-as-eleicoes-de-2020/

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