As regras sobre as eleições de 2020 estavam postas desde, pelo menos, outubro de 2019 e complementadas/regulamentadas pelas resoluções do TSE desde o mês de dezembro de 2019.
Com efeito, as regras das eleições, como atualmente ocorrem no Brasil, foram fixadas, sobretudo, a partir de 1988, com a promulgação da atual Constituição Federal. Diz-se sobretudo porque há normas anteriores (v.g., o Código Eleitoral) e posteriores (v.g., LC 64/90 e Lei 9504/97) à atual Constituição que cuidam da matéria, mas tais leis só têm validade se compatíveis com a Constituição. Daí ser a Constituição o fundamento de validade das demais regras eleitorais.
O processo eleitoral já estava a ocorrer/correr normalmente, com calendário eleitoral fixado por resolução do TSE e tudo mais.
Em suma, tudo estava, milimetricamente, acertado na causa, no tempo, no modo, no espaço, no lugar etc.
É, estava.
Digo que estava porque tudo isso foi chafurdado pela pandemia do Covid-19 e, a normalidade do processo eleitoral, foi rompida no decorrer de várias de suas fases mais importantes, v.g., filiação partidária, mudança de domicílio eleitoral e pré-campanha eleitoral.
Um dano e tanto na normalidade das eleições.
Rompida a normalidade do processo eleitoral necessário se apresenta o adiamento das eleições.
Aliás, eleições, tal como estabelecida e praticada no Brasil, é antitética ao Covid-19. Este impõe, por algum tempo (dois ou mais meses), afastamento, isolamento, quarentena. Aquela pressupõe e requer aproximação e aglomeração.
Diante do quadro, a indagação que resta é por quanto tempo as eleições devem ser adiadas?
Entendo que não pode as eleições ser adiadas para data que ultrapasse o ano de 2020, salvo, evidentemente, se até dezembro de 2020 o Covid-19 ainda interferir na normalidade das eleições.
Não há se cogitar, portanto, de mandato tampão, unificação de eleições gerais e municipais etc. e, somente em caso absolutamente extremo, prorrogação de mandato até que o Convid-19 devolva a possibilidade de existência de normalidade no processo eleitoral.
Sobre a insistência da necessidade de realização das eleições ainda no ano de 2020 poderia simplesmente dizer que o Covid-19, apesar da balbúrdia que provocou e ainda vai provocar, não ab-rogou a Constituição, especialmente não derrogou os incisos I e II do art. 29 da Constituição da República que determinam que a eleição para prefeito, vice-prefeito e vereadores, para mandato de quatro anos, mediante pleito direto, ocorrerá no primeiro domingo de outubro do ano anterior ao término do mandato dos que devam suceder.
Ademais, o mandamento de eleições periódicas está espraiada por quase toda a Constituição da República, haja vista ela pronunciar os princípios republicano e democrático, intimamente vinculados com a ideia de eleições, assim como afirmar que somos um estado democrático e sociedade pluralista (preâmbulo), que o Estado Democrático de Direito tem como fundamentos (princípios fundamentais) a cidadania, o pluralismo político e que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou diretamente (art. 1., II, V e parágrafo único).
Acrescente-se que o art. 14 determina que “A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:”.
O inciso II do § 4º. do art. 60 da Constituição da República diz que eleições periódicas é clausula pétrea.
A considerar que a volta à normalidade é possível depois de três meses de isolamento (segundo análises e projeções científicas e medidas legais adotadas pelo governo federal), temos que este tempo de normalidade volta a se apresentar no mês de julho. Isso numa perspectiva muito otimista, pois há projeções de que o fim do isolamento social necessário somente deve ocorrer em agosto (o pico de infecção seria em junho ou julho).
Com o fim do isolamento social em julho ou agosto, a realização de convenções, registro de candidatura, propaganda e votação estariam incólumes. Mas como ficará tudo que poderia ter sido feito a partir do dia 20 de março até julho ou agosto? Restará, não tenho dúvida, irremediavelmente vulnerada a normalidade e a higidez do processo eleitoral, porquanto terá ocorrido prejuízo irreparável para aqueles que pretendiam mudar de partido e de domicílio eleitoral, para a fiscalização e auditoria dos sistemas eleitorais, para a realização do Teste de Confirmação do Data, para o alistamento, transferência e revisão pelo eleitor, para as prévias partidárias, para a propaganda intrapartidária, dentre outros.
Dentre o que restou inviabilizado nesse período de distanciamento social está a possibilidade de realização da pré-campanha, que é de especial importância no processo eleitoral, faculdade esta que pode ocorrer e ser praticada até o dia em que o pré-candidato se torne candidato registrado.
É nessa fase que os pré-candidatos se fazem conhecer pelos eleitores. Tanto isso é verdade e importante para o processo eleitoral que a Lei das Eleições, a Lei 9504/97, foi alterada para diminuir em quase metade o período de campanha eleitoral e proibir muitos meios de propaganda e, para compensar, acrescentou outras possibilidades de condutas na pré-campanha.
Em razão do necessário isolamento social, a pré-campanha ficou totalmente inviabilizada, pois os pré-candidatos e seus partidos, tal como permitido pelo art. 36-A, caput, incisos I a VII e §§ 1º. e 2º., da Lei 9504/97, desde o mês de março, não podem realizar reuniões, encontros, seminários, congressos, debates etc.; para apresentar a pretensa candidatura, as qualidades pessoais dos pré-candidatos, exposição de plataformas e projetos políticos; para tratar da organização dos processos eleitorais, discussão de políticas públicas, planos de governo ou alianças partidárias visando às eleições; para divulgar ideias, objetivos e propostas partidárias; a realização de prévias partidárias e a respectiva distribuição de material informativo; a divulgação dos nomes dos filiados que participarão da disputa e a realização de debates entre os pré-candidatos; participação em programas de rádio e televisão e, em qualquer desses eventos, pedir apoio político e a divulgação da pré-candidatura, das ações políticas desenvolvidas e das que se pretende desenvolver.
Sem que tudo isso possa ser realizado concretamente (a pré-campanha), processo eleitoral normal e hígido não há. Processo eleitoral sem ajuntamento de gente, conversas cara a cara, é apenas um arremedo de processo eleitoral.
Doutro lado, não existirá eleições pluralistas, num estado democrático de direito, com mitigação de direitos fundamentais, porquanto não haverá igualdade entre as pessoas que se candidatarem pela primeira vez e os que já estão na vida pública e/ou são “famosas” (art. 5, caput, da CF), além dos claros prejuízos em razão do afastamento social inviabilizar a incidência do princípio da legalidade (poder fazer pré-campanha), e dos direitos a manifestação do pensamento e à informação, de locomoção, de reunião, de associação, do devido processo eleitoral, (incisos II, IV, VI, XIV, XV, XVI, XVII e LIV do art. 5 da CF).
Igualmente estará vulnerado o Pacto de San José da Costa Rica porque, conforme preceitua o art. 23, I, “a” a “c”, “Todos os cidadãos devem gozar dos seguintes direitos e oportunidades: a) de participar da condução dos assuntos públicos, diretamente ou por meio de representantes livremente eleitos; b) de votar e ser eleito em eleições periódicas, autênticas, realizadas por sufrágio universal e igualitário e por voto secreto, que garantam a livre expressão da vontade dos eleitores; e c) de ter acesso, em condições gerais de igualdade, às funções públicas de seu país.”.
Realidade é que, com o Codiv-19 a dominar as ruas e a provocar o afastamento das pessoas, não há como imaginar eleições com normalidade e legitimidade como pretende e determina o § 9º. do art. 14 da Constituição da República, pois mais da metade do processo eleitoral, a pré-campanha por exemplo, simplesmente não terá ocorrido.
Também entendo que para dar cumprimento ao que determinam a Constituição e a Lei das Eleições, a partir do dia que for definido para a realização das eleições, devem ser fixados novos prazos para filiação, mudança de domicílio etc., ou seja, deverá ser editado novo calendário eleitoral, até porque cada etapa e data do processo eleitoral é definido a partir do dia das eleições. Sem isso estar-se-á diante de uma eleição ilusória, sem o devido processo legal eleitoral, a igualdade de chances entre partidos e candidatos e manifesto prejuízo às minorias etc.
O adiamento das eleições, ao reverso do que alguns partidos têm feito – ido ao STF ou TSE para dilatar prazos do processo eleitoral etc., – deve ocorrer a partir de deliberação do Congresso Nacional, por meio de emenda à Constituição (art. 22, I, combinado com art. 59 da CF), para alterar a data das eleições para novembro ou dezembro, a depender do que Convid-19 deixar ocorrer.
Em tese e em tempos normais tal emenda constitucional encontraria óbice no art. 16 da Constituição da República que preceitua que “A lei que alterar o processo eleitoral só entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência.”. Ou seja, em tese, com a emenda constitucional, as eleições teriam que ocorrer um ano depois em razão do princípio da anualidade eleitoral.
Entretanto, entendo que não existe nenhum óbice. Basta que a emenda constitucional que vai excepcionar o dia da realização das eleições previsto no inciso II do art. 29 da Constituição da República também excepcione a regra do art. 16.
Aliás, ambos os dispositivos não são cláusulas pétreas, tanto que o art. 16 foi objeto de alteração pela emenda constitucional 04/03 e o inciso II do art. 29 pela emenda constitucional 16/97, e, a emenda constitucional proposta, não visa abolir/atacar nenhuma das cláusulas do § 4º. Do art. 60 da Constituição da República.
De outro lado, não realizar as eleições em 2020; não adiar as eleições, por meio de emenda constitucional; e entregar a definição do adiamento ao STF ou TSE é que, embora não chegue a abolir, será um grave ataque aos princípios federativo e democrático, à periodicidade das eleições, à separação dos poderes e aos direitos e garantias individuais, estes sim, cláusulas pétreas (art. 60, § 4º., I, II, III e IV).
É bom esclarecer que não defendo alteração no texto dos dispositivos (II do art. 29 e o art. 16), mas que seja editada emenda constitucional no ADCT para excepcionar, nas eleições de 2020, os dois dispositivos, já para estabelecer que as eleições possam ocorrer em data distinta da prevista no inciso II do art. 29, já para estabelecer que a alteração na data das eleições não serão alcançados pela regra do art. 16.
Para ficar apenas no tema objeto do presente texto, cabe a lembrança de que o que ora se propõe já ocorreu, como se observa do art. 4. e art. 5., e parágrafos, ambos do ADCT. Veja-se a redação do § 1º. do art. 4º. e o caput do art. 5º.
Art. 4º.
§1º. A primeira eleição para Presidente da República após a promulgação da Constituição será realizada no dia 15 de novembro de 1989, não se lhe aplicando o disposto no artigo 16 da Constituição.
Art. 5º. Não se aplicam às eleições previstas para 15 de novembro de 1988 o disposto no artigo 16 e as regras do artigo 77 da Constituição.
Ademais, o art. 16 visa evitar oportunismos, casuísmos, desconfianças, instabilidades, insegurança jurídica e abusos e desvios legislativos. Realizar eleições, com a pandemia do covid-19 a suspender/impossibilitar/interditar o integral percurso do processo eleitoral, é que provoca a antítese de uma eleição tal como determina as regras constitucionais e legais. Ao reverso, a emenda constitucional para alterar a data das eleições de 2020 resgata o processo eleitoral hígido e integral.
Outro argumento bastante, para o adiamento das eleições como propomos, é que em tempos anormais, como são esses de agora com a pandemia da Covid-19, é que não há vulneração ao princípio da anualidade eleitoral, pois o que se pretende com a emenda para adiar as eleições é exatamente fugir do casuísmo da Covid-19, que quebrou a normalidade do processo eleitoral. “(…) Em suma, o STF tem entendido que a principal finalidade do dispositivo é proteger a igualdade de oportunidade entre as agremiações partidárias e os seus próprios candidatos, de tal forma que, confirmando-se que eventual alteração legislativa não provocou alteração de ordem a romper o equilíbrio entre os concorrentes não se pode falar em ofensa ao princípio da anterioridade da legislação eleitoral, (…)” (ADI 3741).
E é por quase todos sabido que estamos a vivenciar tempos anormais, de proibição de aglomerações, de absoluta necessidade de redução de movimentação de pessoas, de auto imposição do distanciamento social. O Poder Executivo Federal e o Congresso Nacional, assim estados federados e municípios, já editaram dezenas de normas a atestar isso. O STF, também, em dezenas de decisões também já atestou a excepcionalidade do momento e, nalgumas, determinou que o isolamento deve ocorrer. Trata-se, portanto, de tempos anormais a partir dos quais devem ser adotadas medidas e condutas para salvaguardar direitos, como bem isso o Ministro Roberto Barroso, futuro presidente do TSE:
“(…)
A Constituição da República assegura a todos o direito à vida, à saúde, à segurança e à informação (arts. 5º, caput, XIV e XXXIII; arts. 6º e 196, CF). A tais direitos corresponde o dever do Poder Público de prover os serviços necessários à sua garantia e, acima de tudo, a não colocar tais bens em risco.
(…)
Pois bem. É fato público e notório que o mundo enfrenta uma pandemia de proporções inéditas, que tem levado a milhares de infectados e de mortos, ao fechamento de fronteiras, à decretação de medidas de quarentena, de isolamento social, ao colapso dos mais estruturados sistemas de saúde das nações mais desenvolvidas e preparadas para enfrentar um quadro dessa ordem. A situação é gravíssima e não há qualquer dúvida de que a infecção por COVID-19 representa uma ameaça à saúde e à vida da população. (…).
(…)
As medidas de distanciamento social são, portanto, as medidas recomendadas para ganhar tempo no combate à transmissão do vírus e assegurar maior capacidade de resposta para o sistema. Os países que as adotaram de forma mais rápida e rigorosa sofreram menos. Os que tardaram em adotá-la – como é o caso da Itália – enfrentam uma situação dramática. O Brasil tem, contudo, uma agravante. Diferentemente de outras nações examinadas, trata-se de país em desenvolvimento: com grandes aglomerações urbanas, muitas comunidades pobres e enorme quantitativo de pessoas vivendo em situação de precariedade sanitária. Estudo do Imperial College COVID-19 Responce Team aponta justamente que as estimativas de contágio e de colapso dos sistemas de saúde em países em desenvolvimento e em cenários de baixa renda podem se revelar ainda mais graves do que aquelas já expostas em cenários em que esse componente não está presente. (…)
(…)
Ainda que assim não fosse: que não houvesse uma quase unanimidade técnico-científica acerca da importância das medidas de distanciamento social e mesmo que não tivéssemos a agravante de reunirmos grupos vulneráveis em situações de baixa renda, o Supremo Tribunal Federal tem jurisprudência consolidada no sentido de que, em matéria de tutela ao meio ambiente e à saúde pública, devem-se observar os princípios da precaução e da prevenção. Portanto, havendo qualquer dúvida científica acerca da adoção da medida sanitária de distanciamento social – o que, vale reiterar, não parece estar presente – a questão deve ser solucionada em favor do bem saúde da população. (…)” (ADPF 669 MC / DF)
A concordância que se deve proteger esses direitos constitucionais, diante da pandemia do covid-19, é absoluta, a não ocorrer antítese na compreensão de que também é absolutamente necessário se proteger eleições dentro da normalidade constitucional e legal, legítimas e hígidas, ainda no ano de 2020.
O quadro é multiplamente grave. A pandemia é grave porque atinge a saúde e a economia. Mas também o é porque vulnerou a normalidade do processo eleitoral.
Logo, que o Congresso Nacional cumpra o seu dever/obrigação. O momento, sobretudo este em que vivemos, é de legislação. Que cessem os ativismos, ponderações e sopesamento para tentar extrair da Constituição o que nela não contém, no caso, regras para o adiamento de eleições em tempos anormais de pandemia. O tempo é de legitimidade e, para tanto, é tempo de legislar. O sistema prevê a possibilidade de emenda para, também, resolver problemas como esse da pandemia da covid-19. Para o caso cabe decisão política. Não esqueçam da regra da separação de poderes (Art. 2º.).
E que não esqueçam também que eleições autênticas, pluralistas, periódicas, transparentes e com processo eleitoral normal e hígido, é que são a vida, a moeda (a economia) e a saúde da democracia.
3 comentários em “Pandemia do Covid-19: adiar ou não as eleições de 2020?”
Josino | em: 14/04/2020 às 17:00
Excelente artigo
Thiago Pontes Lira | em: 15/04/2020 às 19:02
Muito bom o artigo. Trata do impacto do covid no pleito eleitoral de 2020, bem como trás uma exposição de ideias por meios legais de como ser respeitado o devido processo legal eleitoral, logo que superado a crise do covid 19 no Brasil.
Administrador Administrador | em: 16/04/2020 às 00:24
Obrigado pela leitura.