Pode pensar que advogados são vigaristas e juízes não prestam, mas…

SENSO INCOMUM

Pode pensar que advogados são vigaristas e juízes não prestam, mas…

2 de maio de 2019, 8h00

Por Lenio Luiz Streck

Começo no ponto, na veia: acreditar no Estado de Direito, dizia Lord Bingham, não exige que amemos o Direito de nosso país. Você pode conservar seus preconceitos e continuar achando que advogados são vigaristas e que juízes não prestam.

Mas, complementa o nosso famoso Lord, o que você não deve esquecer é das características de um regime que não tem instituições que garantam o Estado de Direito: censura, discriminação, desaparecimentos repentinos, aquela batida na porta no meio da noite, julgamentos de fachada e a portas fechadas, tratamento degradante a prisioneiros, confissões sob tortura etc.

Vivemos tempos em que precisamos reafirmar o óbvio. É a velha tese de Orwell: em tempos de abismo, temos a tarefa de reafirmar o óbvio.

Temos que reafirmar que verdades existem, que aplicar a lei não é feio, que nem tudo é uma questão de opinião. Que a Terra é redonda, que vacinas funcionam, que o aquecimento global existe. Que Kelsen não é um exegetista. Que Newton, afinal, vejam só, não era um burro.

Pois é. Tempos de reafirmar uma velha obviedade: a democracia é o pior de todos os regimes… exceto todos os outros. E ela não é garantida. Ela veio, mas foi a duras penas. E é sobre essa trivialidade que trato hoje: o valor da democracia e das instituições que a tornam possível.

É uma relação circular. Só há democracia quando há critérios; só há critérios quando há Direito; só há Direito quando há instituições fortes; só há instituições fortes quando há respeito aos critérios que materializam a democracia.

É óbvio. Mas precisamos reafirmar o óbvio. Então, na Senso Incomum de hoje, recorro ao velho Senso Comum de Tom Paine: se, nas tiranias, o Rei é a lei, nos países livres, a lei é o Rei.

Recorro a John Locke: onde termina o Direito, inicia a tirania.

A quem interessa, então, enfraquecer o Direito? Por que gente do Direito odeia o Direito? Encontrei, por aí, nesta semana, um estudante de Direito, com mais de 80 anos, quem, em um trecho de 50 metros que o deixei andar comigo, ficou falando horrores da Constituição e das garantias processuais. Disse-lhe: saia logo dessa. Vai fazer outro curso (entendem o porquê de eu dizer “deixei andar comigo”?). Por que foi escolher justamente “Direito”? Pobre do “estudante”. Uma das frases dele foi: bandido bom é bandido morto (tenho testemunha da conversa). Só no Direito para se formar. Duvido que se formasse em Medicina ou Veterinária ou em Física ou em Filosofia (registro: disse odiar Filosofia). Aliás, hoje em dia, para chumbar na faculdade de Direito, o aluno precisa de pistolão…

Não surpreende que a cruzada anti-institucional — e, porque anti-institucional, antidemocrática — venha daqueles que parecem mais dispostos a prescindir da democracia.

É por isso, meus caros, que tanto me preocupa a naturalização de um discurso que, abertamente, brinca com a possibilidade de mandar fechar uma suprema corte (aliás, o estudante esse também quer fechar o STF).

Preocupa-me ver elogios efusivos a regimes como os da Hungria, que eliminou um dos mais fortes obstáculos à tirania: um Judiciário independente.

Para onde estamos indo? Regredimos?

Vejam, não estou dizendo que as instituições não erram. Eu concordo com Darby Shaw (Julia Roberts) em The Pelican Brief. A personagem, estudante de Direito, diz que, em Hardwick v. Bowers, a Suprema Corte dos EUA contrariou a principiologia constitucional ao reafirmar a constitucionalidade de uma lei que criminalizava a sodomia. Quando seu professor pergunta por que, então, a decisão foi aquela, a srta. Shaw responde: “Because they’re wrong”. Porque a Suprema Corte errou. Simples assim (eis o meu “Fator Julia Roberts”).

Concordo com a srta. Shaw. O Judiciário erra. Bastante. Todavia, disso não se segue que o cenário será melhor sem as instituições que, bem ou mal, garantem nosso ambiente democrático. Ou seja, não dá para violar a lei de Hume: de um é não se tira um “deve”.

Citei Orwell e Churchill, citei John Locke e Tom Paine. Recorro a mais um inglês: Tom Bingham, que falou como poucos sobre o Estado de Direito.

Repito-o, sem receio de chatear:

acreditar no Estado de Direito não exige que amemos o direito de nosso país. Você pode conservar seus preconceitos, e continuar achando que advogados são vigaristas e que juízes não prestam. Mas que você não perca de vista, não se esqueça das características de um regime que não tem instituições que garantam o Estado de Direito…!

Esse é o ponto. Quando você estiver prestes a ir às redes sociais, nessa neocaverna, tapado de raiva, para subir a hashtag #UmSoldadoEUmCabo, pense bem. Estamos mesmo dispostos a abrir mão de nossas instituições?

Há uma série de objeções que podem ser feitas a elas. Objeções válidas. Mas, tomadas uma a uma, vê-se claramente que nenhuma leva à conclusão de que delas não precisamos.

Eu exijo de nossas instituições uma atuação dentro dos parâmetros e limites que a função impõe.

Exijo responsabilidade política.

Exijo obediência a critérios.

Exijo prognose.

Exijo coerência e integridade.

Exijo fairness.

Exijo o devido ajuste institucional dos princípios que sustentamos enquanto comunidade.

E esse é o maior elogio que posso fazer às nossas instituições. Se exijo que elas estejam à altura de nossos tempos difíceis, é porque sei que elas são capazes de fazê-lo.

É porque sei, afinal, que elas são imprescindíveis.

Não nos esqueçamos dessa trivialidade.

Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados:www.streckadvogados.com.br.

Revista Consultor Jurídico, 2 de maio de 2019, 8h00

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