ANIMADORES DE AUDITÓRIO
Na bolsa de valores morais, faz sucesso quem fala o que a massa quer ouvir
24 de maio de 2018, 17h20
Em artigo publicado em seu espaço na revista Época, o jovem professor da USP Conrado Hübner Mendes produz ácidas e duras críticas acerca da atuação do ministro Gilmar Mendes no Supremo Tribunal Federal. Uma democracia se constrói sobre divergências, sendo saudável o enfrentamento de ideias. É nesse contexto de um debate transparente que algumas reflexões merecem vir à tona.
Em primeiro lugar, deixemos de lado adjetivos. Tratar o outro como “maligno” ou “constrangedor” não enriquece a discussão. Antes, a coloca no patamar raso dos embates das palavras de ordem, em que exclamações exaltadas e sem conteúdo precedem à ponderação e serenidade necessárias ao um debate racional.
A primeira crítica diz respeito ao fato de Gilmar Mendes ser sócio de um instituto educacional. Tal atividade não é vedada ao magistrado, basta uma breve leitura das leis sobre o tema. Um magistrado pode ser acionista de uma empresa. Não pode geri-la, e não há indícios de que Gilmar o faça. Dar aulas, desenhar projetos pedagógicos e planejar seminários para discussão de temas jurídicos relevantes é permitido. A não ser que o articulista acredite que magistério se limite a dar aulas, em uma visão tacanha do papel do professor.
E aqui entre nós: com tantas atividades questionáveis no mundo, que sentido há em se atacar quem promove o ensino? E logo um professor? Mais: a escola privada que mais aprovou no Exame de Ordem, porta da profissão para advocacia — uma das melhores do ramo — definitivamente não é o melhor alvo.
A segunda vergasta nas declarações de Gilmar é sobre certos benefícios da magistratura, em sua visão contrários aos princípios republicanos previstos constitucionalmente. Não parece ilegítimo que um magistrado critique o período de férias dos juízes, o dobro de qualquer outro cidadão. Pode-se concordar ou discordar da posição, mas taxá-lo de “bolivariano” por sugerir um debate ou uma reflexão parece indigno de alguém que se diz professor. E de Direito Constitucional.
Por fim, o ataque mais contundente: aquele que joga suspeita nas decisões que concedem Habeas Corpus a determinados réus, como Paulo Vieira de Souza. Fosse cuidadoso, o professor analisaria os casos em que Gilmar concede liberdade, e perceberia que a ilegalidade não está na decisão, mas na decretação da prisão, sem fundamentos, sem contemporaneidade, sem lastro legal, o que admite a supressão de instância para impedir uma prisão ilegal.
Fosse constitucionalista, o professor compreenderia que a liberdade é o maior dos bens e a concessão de Habeas Corpus quando há fundamentos é obrigação do magistrado. E não há uma linha no artigo que indique a ausência de tais fundamentos, apenas expressões vazias como “truque jurídico”, sem atentar que uma prisão desmotivada, sem a observância dos requisitos legais, deve ser afastada de plano, de imediato, sob pena de que se tolere a injustiça estatalmente patrocinada.
Fosse metódico — e isso se espera de qualquer docente — levantaria quantas decisões pela soltura, de ricos e pobres, Gilmar Mendes proferiu, nas mesmas circunstâncias, pelos mesmos fundamentos. Quantas decisões de HC do ministro o pretenso professor leu? Com quais acórdãos as comparou? Houvesse indícios de benefício, de ilegalidade, de tendenciosidade, o professor poderia bradar a seriedade de seus argumentos. Mas, em vez de ler as decisões, compará-las com precedentes, limita-se a citar duas mudanças de posição que ocorreram às claras, de público, nas quais o ministro — como qualquer cidadão — expõe seus motivos e os submete à análise do mundo jurídico. Pode-se criticar seu conteúdo, mas buscar motivos ocultos, insinuar razões espúrias, sem qualquer indicativo fático, esvazia de seriedade a análise de alguém que se diz professor.
Atacar decisões sem lê-las virou um esporte de comentaristas que atacam o juiz que não decide como esperam as arquibancadas. Sempre em busca do aplauso fácil. Animadores de auditório. Compreende-se a vida dura dos jornalistas: sem encontrar constitucionalistas que concordem em fuzilar o Supremo, aceitam a ajuda de qualquer um. Mesmo de quem jamais movimentou um processo na Corte ou não saiba em que condições se dão as decisões monocráticas.
Fosse culto, o professor não citaria o livro do ministro Victor Nunes Leal sem compreender que sua principal crítica não é à figura do coronel, mas a um sistema subserviente, que se curva aos anseios do status quo para evitar sua própria decadência. Em um contexto de crise institucional em que, infelizmente, inúmeros agentes públicos – e professores — se curvam a um autoritarismo latente, que busca em interpretações sinuosas das leis uma forma de burlar seus mandamentos, aquele que ousa decidir em contrário não faz o papel de coronel, mas figura como personagem imprescindível a barrar os avanços autoritários.
Victor Nunes Leal foi um bom juiz. Como Gilmar, foi advogado-geral da União, no governo Juscelino Kubitschek. Assim como o ministro contra quem Conrado se insurge, Leal preocupou-se com a racionalização dos trabalhos no Supremo. E dedicou-se à produção de súmulas para propiciar a uniformização de decisões. Mas a isso só prestará atenção quem acompanhar o STF da vida real. Não quem chega a conclusões levianas a partir de notícias de jornal.
Na bolsa de valores morais, faz cada vez mais sucesso dizer o que as massas querem ouvir. No campeonato nacional da demagogia, defender a prisão de quem apenas é réu dá o maior ibope. Difícil mesmo — como foi na década de 1930 na Alemanha ou na década de 1960 no Brasil — é sustentar que a cruzada moralista contra o que se entende por corrupção não autoriza tudo. Como perguntava o saudoso Arnaldo Malheiros Filho: se para fazer o bem rasga-se a Constituição, onde se chegará para fazer o mal?
Márcio Chaer é diretor da revista Consultor Jurídico e assessor de imprensa.
Revista Consultor Jurídico, 24 de maio de 2018, 17h20
https://www.conjur.com.br/2018-mai-24/bolsa-valores-morais-ibope-falar-massa-ouvir