SENSO INCOMUM
Na Dacha, teóricos do mundo dizem: a verdade não está no enunciado!
19 de outubro de 2017, 8h00
A verdade também não está no precedente. E nem em teses.
Não faz muito escrevi de novo sobre a “febre dos enunciados”. Sei que esse assunto não empolga. Assim como o texto de hoje. Os leitores médios mais se interessam por matérias que tratam de nesciedades, como a de um “Einstein” da “nova geração de juristas” que assinou uma petição com um emoji. Por que ninguém pensara nisso antes? Prêmio Ig-Nobel. Já. Todavia, sigo com o poeta: faz escuro, mas eu canto.
Mãos à obra, pois. Uma vez mais, organizei um encontro na Dacha, muito parecido com aquele de um ano atrás (ver aqui) e, considerando as ilustres presenças, também muito similar à concepção de paraíso do juiz Learned Hand, sempre lembrado por Dworkin (ver aqui, a partir de 11 min). Dessa vez, além do próprio Dworkin, fizeram-se presentes seu antigo professor, Herbert Hart e também Jeremy Waldron, Joseph Raz, Scott Shapiro, Tom Campbell, Friedrich Müller, Ernildo Stein e, quem diria, até Jeremy Bentham, John Austin, Hans Kelsen e Luis Alberto Warat resolveram aparecer. No próximo convescote, outros serão convidados. Apesar do lobby, de novo não convidei realistas para a festa. Como anfitrião, sugeri o assunto: a febre dos enunciados (ver aqui, aqui, aqui, e, pra que não digam que estou sozinho nessa, aqui). Vale dizer que quase me arrependi, uma vez que a tarefa de conseguir explicar essa verdadeira jabuticaba exigiu bastante tempo e esforço.
Os positivistas clássicos ingleses, talvez incrédulos com o que o Brasil do século XXI é capaz de produzir, foram os primeiros a falar. Jeremy Bentham logo disse: “ora, mas os tais enunciados passam longe do Direito como ele deve ser! O ordenamento jurídico já tem um Código que atinge critérios mínimos de clareza e cognoscibilidade, algo pelo qual tanto lutei, e vocês parecem caminhar na direção contrária! Isso pra não falar da ofensa ao princípio da utilidade. Quando a maior felicidade do maior número tornou-se tão aristocraticamente restrita?”. Austin, com toda sua educação vitoriana (e seu conservadorismo), pediu licença a seu Mestre e disse: “Sequer precisamos ir tão longe. Nem precisamos falar agora do Direito como ele deve ser, fiquemos no Direito como ele é: desde quando os enunciados são comandos da autoridade soberana? Não vejo nenhum hábito de obediência dos brasileiros aos juízes que participam dos workshops”.
Hart, empolgado com a presença de Bentham e Austin (e acho que com seu pint de cerveja também), interveio: “E não é só isso. Vejo uma série de outros problemas nos enunciados. Pretendem-se regras primárias sem obedecer aos critérios das regras secundárias. E Dworkin, estou vendo seu sorriso! Já me defendo de antemão: eu disse, sim, que discricionariedade judicial, com seus limites, não é um problema para a democracia. Agora, a discricionariedade surge quando a lei é incompleta, diante de casos que não tenham sido regulados. Nem a discricionariedade que eu descrevo, ainda que você a critique com essa sua mania de resposta correta, levaria em conta uma reunião de juízes fazendo enunciados, também em uma zona de penumbra, que, ou repetem os termos, ou contrariam a lei que existe!”.
Dworkin, bem-humorado como de costume, riu e disse: “Veja só, Professor Hart. Agora concordamos! Eu tenho mesmo uma mania de resposta correta. Que bom!”. O problema é que eu, anfitrião do encontro, continuava incomodado com os enunciados, principalmente depois que descobri que já estão fazendo seminários para… explicar os enunciados. Insisti: “e os enunciados, Professor Dworkin?”. A resposta veio, novamente acompanhada de um sorriso: “Caro Lenio, é muito simples. Os legisladores do Código de Processo Civil foram muito bem quando levaram em conta essa nossa chatice — minha e sua — de exigir coerência e integridade. E esses tais enunciados passam longe desses deveres. Interpretar o Direito sob sua melhor luz passa por respeitar a supremacia do Poder Legislativo. Se Herbert diz que o Direito é um conjunto de regras, eu, por outro lado, disse por muito tempo que é um conjunto de regras e princípios. Bem, acho que todos (você, Herbert, eu, Kelsen et caterva) concordamos que o Direito definitivamente não é um conjunto de enunciados. Sem contar que mais tarde eu até abandonei esse ‘conjunto de regras e princípios’ e passei a considerar um sistema único, segundo o qual todo o Direito é validado por razões substantivas. Veja: razões substantivas, não enunciados”.
Um debate com Dworkin e um vinho de Marlborough. Era o que Waldron precisava: “Ronnie, eu ouvi o Professor Hart falando antes em ‘democracia’, uma palavra que muito me agrada. Sempre defendi a dignidade da legislação. Também vejamos ela sob sua melhor luz. Austin e Bentham me darão razão! Uma legislatura, que leva em conta as diferenças de opinião e princípio de uma comunidade, é muito mais democrática que um fórum aristocrático de magistrados que não precisam fundamentar nada que dizem ali. Desde quando um workshop virou o local mais adequado para solucionar essas questões?”.
Waldron acertou: de fato, Bentham e Austin, cada um bebendo seu chá, concordaram. Austin asseverou que até ele, que não via o direito judiciário com os mesmos maus olhos de Bentham, defendia a codificação. Mostrava-se cada vez mais surpreso com essa escolha que faz o Direito brasileiro, de, aparentemente, trilhar o caminho inverso.
Joseph Raz, até então, ouvia atentamente enquanto mexia na barba e bebia seu café hafuch. Acho que ele se animou com a nova manifestação de Austin, para quem o papel da autoridade era tão importante ao Direito, e foi categórico: “tudo está indo muito bem, mas aproveito a manifestação de John para dizer que vocês estão esquecendo o papel da autoridade. Só podem sinceramente reivindicar autoridade aqueles que podem efetivamente tê-la. Workshop não é fonte autorizada. Logo, enunciado não tem qualquer normatividade jurídica. Simples”.
Scott Shapiro, que, até o momento, parecia estar com a cabeça no mundo da lua, voltou à Terra. Gostou e foi além: “Meu velho amigo Joe está absolutamente certo. Minha reivindicação principal é que as regras jurídicas são, elas mesmas, planos sociais. O plano, assim, tem a característica de fechar uma discussão moral, pois seria especialmente oneroso para uma sociedade discutir e rediscutir um litígio jurídico, toda vez que ele aparecesse, como se fosse um litígio moral. As leis estancam a deliberação moral e tornam o processo deliberativo muito menos oneroso. Esses enunciados parecem ser, especialmente os contra legem, uma irracionalidade, pois se reabre toda a discussão que a lei visou a fechar. Por essa reabertura se paga um preço, mas ainda bem que esses workshops não foram feitos com dinheiro público. Ou foram?”.
Tom Campbell, entre um gole e outro de seu scotch, propôs uma aproximação entre as ideias de Raz e Waldron. Disse que “essa autonomia irrestrita dos oficiais, produzindo enunciados como bem entendem, não se justifica democraticamente”. E Wil Waluchow, bebendo seu vinho de Ontario, aproveitando o ensejo de um argumento que ia para além da autoridade, colocou: “eu, positivista inclusivo que sou, digo que considerações morais até podem fazer parte do Direito, desde que haja um critério que assim determine. Me pergunto onde está o critério de validade que incorpora enunciados ao Direito”.
Retomei a palavra para dizer: “os enuncialistas dão dois passos atrás: insistem no sujeito moderno para, paradoxalmente, buscar uma segurança nas cartografias do pré-moderno. Ignorando que a verdade é transcendental, procuram aprisionar o mundo em proposições. O enunciado que eles põem “sai” do sujeito da filosofia da consciência. É a barbárie interior do sujeito se impondo aos constrangimentos externos, em uma atitude claramente antidemocrática e antiintersubjetiva. É linguagem privada se sobrepondo à linguagem pública. Pior: o enunciado é posto por um ato de vontade e contém pretensões universalizantes”. E Gadamer, que não pode vir, mandou email, dizendo que “se o conteúdo de uma lei deve ser determinado em relação ao caso em que deve ser aplicado, aos enunciados só resta a sina de ser, mesmo, um conceito sem coisa.
Essa discussão sobre enunciados é muito cara para Friedrich Müller (que já havia honrado este anfitrião com seu posicionamento aqui). Ele ficou especialmente animado com o entendimento gadameriano e compartilhou com os demais convidados na Dacha que “é impossível antecipar de antemão uma interpretação, uma vez que a norma jurídica só será produzida por intermédio de um caso”. E a partir daí, já empolgado com sua Brockbier, aproveitou para fazer piada com essa moda de “precedentes” vinculantes.
Waldron, Hart, Dworkin, Campbell, Shapiro, Raz… todos eles se entreolharam. “Precedentes?”, perguntaram. What? Queriam saber qual é o problema. Afinal, mesmo consideradas todas suas divergências, pareciam concordar que o precedente é fonte legítima de Direito (à exceção de Bentham, claro, que não parecia muito animado com a ideia de juiz fazendo lei). Expliquei a eles, dentro do possível, a pretensão precedentalista de produzir de antemão normas gerais abstratas, e todos, juristas do common law, acharam bastante curioso (no mínimo) um “precedente” que nasce precedente, ignorando-se toda a função interpretativa dos tribunais subsequentes na identificação da ratio decidendi. Acharam estranhíssimo que um tribunal possa “elaborar” um precedente, chamando-o de tese, como se um precedente pudesse ter certidão de nascimento e, depois, pudesse valer “por sua autoridade” (algo como querem os precedentalistas brasileiros – auctoritas non veritas facit precedente).
Kelsen, calado até então, disse “basta! A ideia era falar dos tais enunciados. Fiquemos só nisso, por favor. Sim, sei que quem fala de uma coisa fala de outra e, para eles, tudo é a mesma coisa. Os apoiadores do precedentalismo são todos enuncialistas. E vice-versa. Já é mais do que suficiente para um dia só”. Disse que tudo bem. Afinal, compreender essa jabuticaba não é tarefa das mais fáceis mesmo. Mas queria ao menos saber o que ele teria a dizer sobre o assunto, e ele foi direto ao ponto: “é bem verdade que o intérprete sempre terá um espaço a ser preenchido quando da aplicação da norma, na qual o juiz faz inevitavelmente um ato de vontade. Mas nem quando eu trouxe a metáfora da moldura da norma, que, no limite, pode até ser ultrapassada, tinha em mente juízes produzindo enunciados contra legem. É pessimismo demais até para mim!”.
Luis Alberto Warat, que, até ali, era o encarregado de hacer un pedacito de pan en el horno de la Dacha, chegou meio atrasado na discussão. Mas, brilhante, foi logo brincando — em portunhol — com as palavras de Kelsen, quem ele sempre melhor entendeu. “Se Kelsen disse ‘basta!’, concordo. Basta dessa busca por enunciados através dos quais acham que explicaremos tudo. Basta dessa ilusão epistêmica. Denunciei isso há mais de 40 anos. Chama-se a isso de discursos prê-à-porter. Lenio sabe bem disso porque sempre aplicou isso em suas críticas inclusive nos seus pareceres. Sei porque muitas vezes me chateou mostrando suas peças”. E pediu mais uma “copa de vino”.
Ernildo Stein, que me ajudou trazendo legumes e vegetais fresquinhos colhidos na horta de sua cabana que avizinha a Dacha, disse-se surpreso com a capacidade de parte da comunidade jurídica de isolar o Direito da filosofia, como se o Direito fosse uma ilha cercada de vazios epistêmicos. Lembrou de seu livro Seminário sobre a verdade, em que desnuda essa tentativa de se fazer proposições como enunciados assertóricos. E eu lembrei que também no seu Ilusões da Transparência há ótimos argumentos para o enfrentamento das teses enuncialistas. Se eles lessem…
Feliz com o encontro, o jantar foi servido. Rosane, ombreando-se comigo como anfitriã, comandou a equipe que serviu pato, porco e todos os acompanhamentos possíveis e imagináveis. Sobremesa: torta de maçã, com taças de café fumegante e licores de ervas finas. Madrugada adentro, o encontro rendeu muito mais. Muitos bastidores… Tudo falado pelas costas dos adversários teóricos. Sim, pelas costas, porque pela frente é uma terrível falta de educação…! Mas contarei o restante em outra coluna.
Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados:www.streckadvogados.com.br.
Revista Consultor Jurídico, 19 de outubro de 2017, 8h00
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