TRIBUNA DA DEFENSORIA
STF é ator relevante da disfuncionalidade institucional brasileira
3 de outubro de 2017, 12h00
Há pouco menos de dois anos, a ConJur publicou texto escrito, a muitas mãos, por um conjunto de jovens professores de Ciências Penais em Minas Gerais, oriundos do prestigiado Programa da Pós-Graduação Stricto Sensu da PUC-Minas. Tratava-se de um artigo sobre a sequência de erros em torno da prisão “em flagrante por mandado” do Senador Delcídio do Amaral, do PT, então líder do Governo naquela Casa Legislativa, ordenada pelo incompetente Supremo Tribunal Federal. Ali se identificou uma grave disfuncionalidade institucional no Brasil, com invasão de atribuições do legislativo pelo judiciário.
De dezembro de 2015 até setembro de 2017, a disfuncionalidade das instituições brasileiras só fez aumentar, a despeito de um discurso acalentador e inadvertidamente repetido como mantra anestésico, segundo o qual “as instituições estão funcionando”. O país viveu nesse interregno um processo, traumático por definição, de impeachment da presidente da República Dilma Rousseff; o afastamento judicial do presidente da Câmara dos Deputados (segundo na linha sucessória presidencial) Eduardo Cunha do mandato e seu posterior encarceramento cautelar-provisório, em vigor até hoje; o afastamento liminar-monocrático do presidente do Senado (terceiro na linha sucessória presidencial) Renan Calheiros de sua função, a negativa de cumprimento à decisão e a posterior revisão do comando pelo plenário do STF; o recebimento de denúncias várias e a prolação de uma condenação penal contra o ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva; o oferecimento de duas denúncias contra o presidente da República Michel Temer em pleno exercício de mandato, uma inadmitida, outra em vias de apreciação pela Câmara dos Deputados; a instauração de inquéritos policiais e o oferecimento de denúncias contra inúmeros políticos, dos mais variados matizes e espectros partidários.
Em paralelo, o STF suprimiu semanticamente garantia fundamental da Constituição, o princípio da inocência, transformando a expressão “trânsito em julgado” em “segunda instância”, para permitir, em bases processuais civilísticas quanto aos efeitos dos recursos, a execução da pena a partir do acórdão condenatório recorrível (e até da sentença recorrível, em casos julgados pelo tribunal do júri, conforme a decisão do HC 118.770). Deu-se a ressurreição da abjeta presunção de culpa, no curso do procedimento penal, contra texto expresso do artigo 5º, LVII, da CRFB.
Tudo isso foi temperado por muitos, muitos mesmo, capítulos da imorredoura operação “lava jato”, já parte do interesse novelístico da população, a incluir o autogrampo do até então responsável por “colocar os últimos pregos no caixão” da imoralidade no país, o sócio majoritário, gerente e administrador da J&F, Joesley Batista. Não se pode esquecer que, a propósito desse particular tema, a maioria dos ministros do STF defendeu a necessidade de o judiciário garantir a lealdade dos órgãos públicos persecutórios (agências estatais de repressão, de acordo com E. R. Zaffaroni) ao que avençado com os delatores premiados (eufemística e retoricamente chamados de “colaboradores da justiça”), pelo que não autorizou a revisão das cláusulas “negociadas” entre Ministério Público e delatores, malgrado à margem da lei, da Constituição e dos Tratados e Convenções Internacionais sobre Direitos Humanos (confira-se, publicado nesta mesma ConJur, o artigo de J. J. G. Canotilho).
A última decisão da primeira turma do STF em matéria processual penal consistiu em, novamente, afastar do exercício do mandato um parlamentar, desta feita o senador Aécio Neves, do PSDB, impondo-lhe ainda recolhimento domiciliar noturno, proibição de contatar outros investigados, entrega de passaporte, dentre outras medidas cautelares (artigos 317 e seguintes do CPP). A sequência de reviravoltas e novidades jurisprudenciais no STF, tanto neste caso específico, quanto nos últimos dois anos, bem indica o papel assumido pelo órgão de cúpula do judiciário brasileiro na atual quadra histórica: o de superego de uma sociedade órfã, na precisa explicação de Ingeborg Maus. Para atalhar os contornos jurídicos do caso do senador Aécio Neves, vale repetir o que se disse a propósito do caso do senador Delcídio do Amaral, há quase dois anos:
Segundo a Constituição (artigo 53) “os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos” e, (artigo 53, § 1.º, e artigo 102, I, c) “desde a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal”. A competência do STF para processar e julgar parlamentar não engloba, porém, a análise de eventual prisão em flagrante, porque, (artigo 52, § 2°) “desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão”. Ainda de acordo com a Constituição, o conjunto de imunidades de um parlamentar possui tanta importância, que (artigo 52, § 8º) “as imunidades de deputados ou senadores subsistirão durante o estado de sítio, só podendo ser suspensas mediante o voto de dois terços dos membros da Casa respectiva, nos casos de atos praticados fora do recinto do Congresso Nacional, que sejam incompatíveis com a execução da medida”. Estado de sítio é uma situação jurídica de gravíssima instabilidade institucional, caracterizada pelo fracasso de medidas em estado de defesa, comoção de âmbito nacional, declaração de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira (artigos 137 a 139 da CRFB). Mesmo nessa situação de profunda instabilidade institucional, as imunidades dos parlamentares não podem ser suspensas, salvo por deliberação qualificada (2/3 dos membros) da Casa legislativa do parlamentar. É fora de dúvida, por outro lado, que proposta de emenda à constituição, aprovada por 3/5 dos parlamentares, em dois turnos, em cada qual das casas legislativas federais, pode reformar a Constituição e reduzir ou minorar, com o argumento da isonomia, as imunidades materiais e processuais de parlamentares, chefes do Executivo, juízes e acusadores. Mas o STF, por seu órgão pleno ou por suas turmas, a menos que se coloque na condição de superego da sociedade [1], poder constituinte permanente [2] ou operador de ficções de liberdade e dignidade para todos [3], não tem autorização constitucional para (r)estabelecer os marcos da própria competência, sobretudo se isso implica usurpação de atribuições de outro órgão de função constituída, a saber, a função de reformar a Constituição, exclusiva do Congresso Nacional (artigo 2º da CRFB).
O juízo natural para o controle processual da legalidade e da constitucionalidade da prisão em flagrante de senador, segundo a Constituição, é o Senado, casa legislativa a que vinculado, não o STF. Falta ao STF competência para exercer esse controle, embora possua a competência de processar e julgar o caso penal que envolva parlamentares federais por crimes comuns (artigo 102, I, c, da CRFB). A prisão preventiva de senador ou deputado Federal não pode ser decretada de forma alguma. Literalmente, a Constituição a veda e nenhuma leitura autoritária do flagrante como indutor da presunção de culpabilidade e, por conseguinte, da prisão preventiva sobrevive, salvo por alguma sorte de messianismo judiciário ou acusatório, ao prodigioso conjunto de garantias constitucionais que limitam a prisão no ordenamento jurídico brasileiro. Ainda que se admitisse, a partir de uma interpretação historicista do CPP e da Lei 6.416/77 em detrimento da ruptura democrática operada pela Constituição de 1988, a decretação de qualquer medida cautelar contra o parlamentar, para além do flagrante, competente para fazê-lo jamais seria qualquer órgão da estrutura judiciária, sob pena de se chancelar, repita-se, usurpação de atribuições do Senado (artigo 2º da CRFB). (grifos acrescidos)
O problema da disfuncionalidade institucional brasileira tem, porém, raízes mais profundas do que a análise isolada de um ou outro caso pode revelar. O assumido imaginário dos ministros do STF inclui hoje a percepção de que cabe a ele não apenas expandir suas competências, como tornar-se objeto de veneração religiosa de uma sociedade aparentemente infantilizada e órfã (Maus, ob. cit. P. 185), cuja satisfação passa inevitavelmente pelo suplício purificador do cárcere para os supostos inimigos da pátria. Pela sequência de acontecimentos acima lembrada, tem-se imposto, pelas decisões do STF, com o estímulo insistente da Procuradoria-Geral da República, a limpeza moralizadora da classe política e do que ela representa.
Mas essa higienização não seria possível se não se imprimisse à Constituição mesma uma nova (?) leitura, de acordo com a qual ela deixa de ser um texto cujo sentido é guardado pelo STF, para se tornar “um texto fundamental a partir do qual, a exemplo da Bíblia e do Corão, os sábios deduziriam diretamente todos os valores e comportamentos corretos” (Maus, ob. cit., P. 192). Para substituir o monarca ou assumir o papel de poder constituinte permanente, o STF brasileiro pratica, hoje, em analogia à mais lúcida abordagem de Maus sobre o Tribunal Federal Constitucional alemão, uma “teologia constitucional”.
Nesse ambiente, como notou Maus, soçobra o princípio da legalidade, inclusive a legalidade constitucional. Os parâmetros legais e normativos da própria Constituição se tornam plenamente revisitáveis pelos julgadores da cúpula do judiciário. Intercambiável, como apenas um dos tantos princípios de que dispõe a corte para justiçar casos e pessoas, a legalidade não cumpre mais do que um papel retórico no discurso distópico das autoridades (Cunha, Rosa Maria Cardoso da. O Caráter Retórico do Princípio da Legalidade. Porto Alegre: Síntese, 1979). Nem método há para decidir; se há, ele não vincula os julgadores, cujo “livre convencimento” se estende até à escolha do “método adequado” “Entre as teorias da metodologia jurídica hoje predominantes quase que desaparece o condicionamento legal-normativo da Justiça sob o peso de orientações teleológicas, analógicas e tipológicas ou de procedimentos tópicos, finalísticos, eficacionais e valorativos, além da própria escolha pelo juiz do “método adequado” entre outras concepções concorrentes” (Maus, ob. cit., P. 193).
Sob o ponto de vista lógico, o que se nota é a ocupação do lugar do soberano pelo STF no momento da decisão que suspende a lei ou a norma (ainda que de gabarito constitucional), instalando o estado de exceção, no qual a autoridade julgadora tem ampla liberdade para migrar intra ou extrassistemicamente e achar os melhores fundamentos decisórios, seja no texto constitucional, seja fora dele ou contra ele, se necessário (AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Coleção Estado de Sítio. Tradução de Iraci D.Poleti. São Paulo: Boitempo, 2008, P. 59-63). É por isso que se pode interpretar a Constituição (que veda prisão e medidas cautelares contra parlamentares) de acordo com o CPP (com suas “novas” medidas cautelares, artigos 317 e seguintes), e não o contrário. É com esse “método” mágico, da prevalência semântica da jurisdição constitucional (como atividade dos juízes) sobre a própria Constituição, que a vedação a prisão e medidas cautelares contra parlamentares se torna permissão, ou que o incompetente STF se torna competente, usurpando funções do Senado. É a transformação explícita do Estado de Direito (Rechtsstaat) em Estado dos juízes (Richtersstaat).
A necessidade conjuntural, as medidas excepcionais para situações excepcionais, o civilístico poder geral de cautela do juiz para interditar a sempre grave e desafiadora crise moral, social e política que assola a nação, o clamor das ruas, a oportunidade para dar uma lição de moral no parlamentar, que, sozinho, não a conseguiu aprender — embora nenhum desses elementos caracterize fundamento jurídico para o ato decisório de gravidade penal ou processual penal, cada qual deles passa a caracterizar, em razão do auto-atribuído mister redentor e salvífico da jurisdição constitucional, aristocraticamente reservado a poucos sábios dadores de sentido ao texto constitucional, não mais meros guardiães dele. “Legibus solutus“: assim como o monarca absoluto de outrora, o tribunal que disponha de tal entendimento do conceito de Constituição encontra-se livre para tratar de litígios sociais como objetos cujo conteúdo já está previamente decidido na Constituição “corretamente interpretada”, podendo assim disfarçar o seu próprio decisionismo sob o manto de uma “ordem de valores” submetida à Constituição” (Maus, ob. cit., P. 192).
Quis custodiet custodiam? Parlamentares e chefes do Executivo, bem ou mal, concorde-se ou não com a estruturação atual do processo eleitoral, submetem-se ao escrutínio popular direto, a cada quatro ou oito anos. Tal controle não sucede aos ocupantes dos cargos vitalícios de juízes e acusadores, a agravar a situação de eventual usurpação da moral coletiva por um tribunal, ainda que situado no topo da estrutura judiciária nacional. “Quando a Justiça ascende ela própria à condição de mais alta instância moral da sociedade, passa a escapar de qualquer mecanismo de controle social – controle ao qual normalmente se deve subordinar toda instituição do Estado em uma forma de organização política democrática. No domínio de uma Justiça que contrapõe um direito “superior”, dotado de atributos morais, ao simples direito dos outros poderes do Estado e da sociedade, é notória a regressão a valores pré-democráticos de parâmetros de integração social” (Maus, ob. cit. P. 187).
É por tudo isso que, quando se examina, com o mínimo de comprometimento jurídico-epistemológico, o atual cenário de disfuncionalidade das instituições jurídicas e políticas no Brasil, em especial no que concerne aos aspectos processuais penais, apenas uma conclusão soa de pronto absurda: a de que o STF não seja dele um ator relevante, se não o protagonista.
* Artigo escrito por Vinícius Diniz Monteiro de Barros, PUC Minas, ESA/OAB-MG; Ulisses de Moura Dale, IME PAC/Araguari; Lucas Laire Faria Almeida – PUC Minas; Leonardo Vilela – PUC Minas; Fábio Presoti – FAMIG, PUC Minas; Marcus Vinícius Pimenta Lopes – FEAD; José de Assis Santiago Neto – PUC Minas; Leonardo Avelar Guimarães – PUC Minas, ESA/OAB-MG; e Marcelo Peixoto de Melo – PUC Minas, Faculdade Arnaldo.
Revista Consultor Jurídico, 3 de outubro de 2017, 12h00
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