DIÁRIO DE CLASSE
A criminalização da arte e a recolonização do Direito pela moral
16 de setembro de 2017, 10h14
Boccaccio, Marquês de Sade e Vladimir Nabokov morreriam de fome nos dias de hoje, e seus livros seriam todos queimados em praça pública. Pior: estes autores estariam presos na ala dos pedófilos e estupradores, sob o aplauso de alguns setores mais conservadores da sociedade. Imagino o que faríamos com Apuleio, que escreveu Metamorfose ou O asno de ouro, ainda no século II.
A ideia de que a pedofilia, a pornografia e a blasfêmia estão sendo travestidas de arte vem ganhando cada vez mais força. Trata-se, contudo, de uma ideia moralista maquiada por uma suposta e ilegítima pretensão jurídica de limitar o direito à liberdade de expressão.
Após o polêmico episódio do cancelamento da exposição Queermuseu pelo Santander Cultural, em Porto Alegre (que chegou a ser notícia no The Washington Post), a polícia apreendeu, na última quinta-feira (14/9), o quadro Pedofilia, da artista plástica mineira, Alessandra Cunha, que integrava, desde junho deste ano, a exposição Cadafalso, no Museu de Arte Contemporânea (MARCO) de Campo Grande (veja aqui).
Até onde o Direito pode patrulhar a liberdade de expressão artística? Já escrevi sobre o tema neste Diário de Classe em duas oportunidades (leia aqui e aqui). Veja a que ponto chegamos. O quadro foi apreendido pela polícia, após deputados estaduais registrarem boletim de ocorrência na Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente e pedirem a inclusão da artista no cadastro estadual de pedófilos.
Havia ordem escrita e fundamentada para a apreensão do quadro? Algum dogmático-de-plantão dirá que, no caso, haveria algum crime instantâneo de efeitos permanentes e que, portanto, a apreensão do objeto do crime estaria legitimada. A questão seria, então, saber qual é este crime?
Quando entrevistado, o delegado disse: “No quadro questionado aí, aparece uma gravura de um homem com pênis muito próximo de uma criança, embora sejam gravuras. Mas eu entendi que existiu sim o crime de apologia”.
Apologia ao crime? Para o delegado, a artista teria feito, publicamente, apologia de um fato criminoso. E esse fato criminoso seria pedofilia. Ocorre que, se analisarmos os crimes previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente, todos eles exigem o envolvimento de “criança ou adolescente” — de carne-e-osso, e de não suas representações (p. ex.: desenhos, gravuras, pinturas etc) — em “atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou exibição dos órgãos genitais de uma criança ou adolescente para fins primordialmente sexuais”. E esse, seguramente, não é o caso do quadro apreendido.
Aliás, se aqui houvesse apologia, ou mesmo incitação ao crime, o que teríamos que dizer da atual novela das oito (que passa às nove), cuja protagonista Bibi (que também é o nome de uma marca infantil de calçados) — personagem de Juliana Paes — é uma criminosa perigosa que se tornou a chefe do tráfico?
Por mais estranho que pareça ter de afirmar isso, não há nenhum crime “no quadro”, seja na sua produção, seja na sua exposição. Trata-se de uma representação artística. Esse é o ponto. Se o quadro é de bom ou de mau gosto, isso é outra discussão. Uma discussão estética, ou até mesmo moral; nunca jurídica.
No campo normativo, talvez se pudesse regulamentar a exigência de classificação indicativa da faixa etária também para exposições artísticas, tal qual ocorre no cinema e na televisão, conforme a Portaria 368/2014 do Ministério da Justiça. Confesso, porém, que desconheço museus que adotem medidas semelhantes. A literatura, por exemplo, não tem qualquer limitação deste tipo.
No fundo, tudo isso revela nossa incapacidade hermenêutica. Cada vez temos mais dificuldade em interpretar, sobretudo quando esse exercício exige a suspensão de nossos pré-juízos e pré-conceitos. Por exemplo: o fato de um homem tocar os genitais de uma criança. Esse “fato” pode constituir crime? Sim, se o homem estiver satisfazendo sua lascívia mediante a violação sexual da criança. Não, se estivermos diante de um pai que faz a higiene de seus filhos. O problema reside no sentido que se atribui ao fato.
No caso do quadro apreendido, a arte não constituía um meio de exploração da criança, mas, ao contrário, uma forma de promover a reflexão sobre determinado o tema da pedofilia. Nesse mesmo sentido, a feliz manifestação do Ministério Público local (ainda enquanto escrevia esta coluna), reconhecendo que a apreensão do quadro constitui uma “agressão à arte e cultura”, uma vez que “o propósito da artista, salvo melhor juízo, tem condão de causar uma reflexão, um debate sobre o tema e não promover o incentivo para que crianças sejam alvos desses crimes” (leia aqui).
Enfim, somente o desconhecimento a respeito do caráter subversivo e reflexivo da arte, aliado à pretensa recolonização do Direito pela Moral, pode conduzir à tentativa de criminalização de quadros, músicas, livros e outras formas de manifestação artística, negando, assim, a conquista civilizatória representada pela secularização. Que tempos são estes, em que temos de defender o óbvio?, já dizia Brecht (outro que também não escaparia em face de seus poemas eróticos).
André Karam Trindade é doutor em Direito, professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Guanambi (FG/BA) e advogado.
Revista Consultor Jurídico, 16 de setembro de 2017, 10h14