LIMITE PENAL
Pensar a genealogia do
processo penal autoritário
25 de agosto de 2017, 8h00
Prefácio ao Nulidades no Processo Penal (Genealogia do Pensamento Processual Penal Autoritário), de Ricardo Jacobsen Gloeckner
Em 2006 fui falar nas VI Jornadas Jurídicas da ULBRA, em Carazinho, sobre “A violência e o homem sem gravidade”. Eram tempos de estudos sobre o livro de Melman/Lebrun e muito marcados por aquilo que Charles Melman chamava de “nova economia psíquica”.[1] A conversa parece ter sido bem recebida e todos pareciam contentes. Dentre os professores de lá estava um garoto novo, formado há pouco tempo na UPF (2002), em Passo Fundo, e que por aqueles meses havia terminado o Mestrado na PUCRS (2005), em Porto Alegre, sob orientação do grande Prof. Dr. Aury Lopes Júnior. Ele se destacava pela inteligência, pelo conhecimento (embora fosse muito jovem), pela velocidade de raciocínio, pela maneira como expunha as ideias, pela sagacidade e, sobretudo, pela humildade, própria daqueles que sabem que não sabem e, portanto, que precisam seguir aprendendo e aprendendo e aprendendo de modo a fazer daquilo a sua razão de ser. Era Ricardo Jacobsen Gloeckner.
Ali, então, por tudo isso e muito mais, já foi possível antever que se estava diante de alguém que iria crescer e se fundar como um dos grandes nomes do direito brasileiro, particularmente do direito processual penal. Era, ao que parecia, uma questão de tempo.
Desde aqueles dias ficamos amigos, como que se tivéssemos uma amizade antiga; e isso foi muito importante na relação que tivemos no doutorado que ele fez, após aprovação na prova de ingresso, na UFPR, sob minha orientação. Quando defendeu a tese (“Uma nova teoria das nulidades: processo penal e instrumentalidade constitucional”), em 2010, a previsão começava a se consolidar. A monografia era um primor e mostrava que o caminho trilhado na busca do conhecimento estava correto, justo porque o tema era árduo, difícil, complexo, quase intransponível, embora não tenha sido obstáculo para que a tese se consolidasse e, com ela, desabrochasse um saber que se poderia e deveria reconhecer.
A tese, porém, não ficou esquecida naquela defesa. Ao contrário, parecia que era ela tão só o começo de um trabalho meticuloso que viria pela frente, em face das exigências do tema. Eis por que o livro que dela foi produzido (em 2013 a 1ª edição e em 2015, a 2ª edição) já veio com ajustes que espelhavam um crescimento qualitativo muito grande.
Agora, contudo, tem-se um livro quase novo, de uma qualidade impressionante.
Por certo, influenciou o Pós-doutoramento que ele fez em 2015-2016 na Università degli Studi di Napoli Federico II, um grande centro de investigação e que acolhe professores de primeira linha na Itália mas, sabe-se bem, esse tipo de estágio serve para se verificar quem é, de fato, o pesquisador, ou seja, se ele ganhou asas para voar sozinho. Neste aspecto, então, o livro deixa poucas dúvidas, porque o tema do qual trata é recorrente e, assim, mostra uma evolução que se deve atribuir ao próprio pesquisador.
Ele, enfim, ganhou maturidade, aquela à qual só chegam os que dominam, efetivamente, os conteúdos; e por isso produziu um trabalho que se não tem igual, em processo penal, sobre o tema e do ponto de vista qualitativo, no Brasil.[2]
Seria impossível, por evidente, reproduzir aqui uma suma razoável do livro, tal a amplitude que ele tem, mas alguns pontos de relevância podem – e devem – ser tratados de modo a incentivar o leitor a um mergulho mais profundo no texto.
Antes de tudo, no capítulo introdutório explora os “sistemas processuais e a forma processual penal”. O autor liga ambos de maneira precisa e consciente, como uma necessidade: “Qualquer teoria das formas guardará uma íntima conexão com a problemática dos sistemas processuais e sua respectiva conformação. Por esta razão é que a teoria das nulidades deve ser pensada em consonância com os sistemas processuais penais, mormente porque inevitável que a forma processual acene para os sistemas processuais mediante opções políticas.” Eis por que parece evidente a assunção do sistema acusatório – de fato o único possível para uma estrutura democrática – do qual não se pode declinar: “A forma processual para o sistema acusatório, não deve estar desprovida de um controle sistemático incidente sobre as provas produzidas, garantindo sua higidez, mas da mesma maneira, todos os atos processuais orientam-se pela preservação das regras do jogo – as garantias fundamentais. Não é à toa que Cordero estabelecerá uma ligação muito forte entre o que chama de fair play – preservação das regras do jogo e as funções jurisdicionais que devem zelar por tais garantias. Para bem fazer valer este controle jurisdicional sobre a forma, indispensável a garantia da higidez mental do julgador, ou seja, a ausência das atividades policialescas e dos delírios persecutórios. Nas palavras do professor italiano, o sistema acusatório consistiria em um método adaptado a pessoas psiquicamente sãs e não muito complicadas. Tudo reside no fair play.”[3]
O campo temático do livro, então, circunscreve-se na relação forma-sistema acusatório, o que por si só torna relevantes as questões expostas: “A presente investigação pretende no momento apontar para a existência de um estreitamento da economia política das formas com o sistema acusatório, no qual prevalece uma ideia que se movimenta a dois tempos: a) o sistema acusatório representa um modelo de preservação da forma processual, principalmente pela desvinculação do juiz da atividade persecutória, o que determina ao magistrado uma função de fiscalização dos atos processuais mais rigorosa; b) a forma processual é concebida dentro de um sistema processual acusatório, no qual a forma se antepõe – como obstáculo se preciso for – à busca a qualquer preço da verdade substancial. (…) Em suma, são as formas a construir a possibilidade lógica do juízo. Um processo sem formas é pura arbitrariedade.”
Por outro lado, ninguém – hoje – duvida, em tendo tão só um pouco de seriedade, que o processo penal é pura linguagem; ou quase. Com isso, ele ganha um particular relevo, mormente naquilo em que toca com os mais variados campos do saber e, enfim, colhe a sua própria juridicidade na forma. Eis, então, a importância transcendental que tem ela, a qual não passou despercebida pelo autor: “Enquanto a forma estabelece o predicado dos atos processuais, o limite estabelece a constituição do aspecto negativo resultante da irregularidade. O rompimento do limite implicado pela forma constituirá a irregularidade processual. O aspecto político da forma é o de sustentar a existência de limites os quais governam os procedimentos judiciais. As formas mais rigorosas, como as vislumbradas no sistema acusatório, indicam um tratamento do limite que se antepõe ao poder político de maneira mais veemente. Uma ausência do tratamento do limite no processo penal estaria a indicar uma confusão entre o sistema jurídico e político, já que se constituiria o processo penal em instrumento perfeito para se atingir inúmeros e os mais variados fins, mediante o que Cordero denominará de amorfismo.”
Só isso já seria suficiente para se entender um pouco do que se tem passado no Brasil em termos de processo penal. Ao se admitir que as coisas possam ser feitas à revelia da lei – e, portanto, da forma –, como se tem feito, num verdadeiro amorfismo pelo qual os fins justificam os meios, é “natural” que se atinja “inúmeros e os mais variados fins”, na mais pura expressão de um solipsismo jurisdicional sem controle ou – o que é pior – que concorda com ele e seus resultados. Isso mostra – pelo que aqui interessa – como o livro é atual e importante.
Nos capítulos seguintes (II, III e IV), o livro faz uma visita, de alta qualidade, à estrutura teórico-conceitual das nulidades, na maneira como se apresenta na dogmática. Mas não é só para descrever; muito pelo contrário. A crítica séria conduz à desconstrução e ao final o que resta é a conclusão de que se não pode mais sustentar as bases, que se prestam ideologicamente a manter o status quo.
A partir do capítulo V começa a se desenhar uma nova estrutura, justo porque se vai tratar dos “pressupostos de uma nova teoria das nulidades: adequação constitucional a um processo penal democrático”. Nele vem à tona a questão constitucional como legitimação e, a partir disso, constroem-se os pressupostos, ganhando concreção a refutação à concepção instrumentalista-funcional-teleológica de processo penal.
A proposta do autor está, com toda a sua força (embora ela apareça por todo o livro, por óbvio), no capítulo VI, no qual ele expõe os “princípios organizadores de um novo sistema de nulidades”. Aqui, vale a pena observar um por um (são 8), de modo a se ter, por eles, a dimensão da proposta: princípio da inutilização do ato processual nulo; princípio da preclusão probatória: limites à produção da prova; princípio da escusa absolutória (proibição da declaração de nulidade do ato processual nos casos de absolvição); princípio da prevalência das nulidades legais – taxatividade temperada; limitações à alegação de invalidade processual pelo Ministério Público[4]; princípio da extensibilidade jurisdicional: as nulidades na investigação preliminar; nulidade como categoria única: abandono da inexistência dos atos processuais e das irregularidades; orientação normativa das formas processuais: repensando o processo penal no marco de um modelo acusatório ou inquisitorial minimizado.
Assim, desde essa nova dimensão, o autor lança, no capítulo VII, uma leitura a partir dela e, para tanto, mergulha na jurisprudência do STF, desbaratando a falaciosa construção que ali se montou, cheia de idas e vindas, um tanto como o modelo da dogmática que se constrói naquele tribunal, ainda movido (por mais absurdo que possa parecer) pelos casos concretos e suas idiossincrasias. Aqui, não fica pedra sobre pedra. Por isso, quando o autor chama o capítulo de “‘Guerra às nulidades’: a economia das formas processuais no Supremo Tribunal Federal”, o título causa um certo espanto, mas não é em vão. Foi feito o que era necessário. Afinal, o STF, ainda que alguns não levem isso em consideração (especialmente alguns ministros, como se sabe da própria história do tribunal), ilumina o pensamento jurídico nacional e por força da coisa julgada se impõe quando for preciso. Em suma, pelo menos e mais diretamente para a jurisprudência, têm as decisões do STF uma importância imensa e, no caso (no que se refere às nulidades), ela é um sintoma da razão por que o direito, no Brasil, não encontra paz em muitos aspectos importantes. Ora, quando no tribunal imperam as posturas solipsistas, cada um dizendo o que quer e fazendo valer suas impressões pessoais como se fossem verdades absolutas, tenham elas respaldo ou não, tudo parece algo provindo da veneta. Que isso é possível parece ser questão que se revolve pelo poder que se tem; mas que seja efetivamente democrático e salutar à nação é algo para não ser respondido de modo positivo. Um tribunal como o STF só tem a importância que tem porque ao iluminar o futuro assim o faz a partir de uma cultura (particularmente jurídica) que lhe dá base e, portanto, que foi anteriormente construída, não raro com muito esforço e com a vida de alguns que a perderam justo (pelo menos na justificativa) para se poder formar um padrão que servisse para ser respeitado adiante. Decidir com fundamento nessa cultura é garantir a estabilidade e, com ela, a segurança jurídica de que tanto se fala e se precisa. Se assim não é, porém, o que se tem é bulício, balburdia, tumulto; aquilo que flerta com a guerra. E esse, em definitivo, não é e nunca foi o papel do STF.
Em tema de nulidades e quiçá como em nenhuma outra matéria, como mostra o autor, a estrutura, do jeito que está, vai manipulada segundo os interesses do momento; e se manejam os princípios e as regras de modo a se ajeitarem as situações. Por evidente que não pode ser assim.
Antes de tudo porque o processo penal, pela forma (que não encontra paralelo democrático capaz de ser colocado em seu lugar), só se sustenta se ela for controlada efetivamente (o processo deve ter higidez) e, assim, as regras – e princípios – forem respeitadas nas suas conformações, a começar por aquelas constitucionais. Se isso não ocorrer é o processo penal, como um todo, que fracassa, restando dele tão só um fantasma que se presta ideologicamente a perseguir alguns, em geral os mais débeis, para não falar dos mais pobres.
O Brasil é, por coisas assim, cheio de contradições. Ao mesmo tempo que falha em alguns aspectos (como naquele denunciado no livro, ou seja, no tratamento das nulidades processuais penais), agiganta-se quando apresenta professores como o autor, ou seja, gente que lutando contra tudo e contra todos – logo, quase sozinho – acaba por ver a vitória e, com ela, não se acomoda, razão por que trata de a compartilhar com os outros em um projeto de futuro, como pura esperança. Um dia, quem sabe, o Brasil será efetivamente grande e, assim, poderá ser vitorioso nos dois aspectos. Oxalá isso não demore tanto.
O livro do Prof. Dr. Ricardo Jacobsen Gloeckner é, verdadeiramente, um primor; e deve ser lido como uma aula possível de democracia. Agora, com a Editora Saraiva, quem sabe tenha o livro a merecida divulgação, razão por que a opção por ela – pode-se antever – tenha sido acertada.
Opção certeira, do autor, porém – e que se sabe há muito –, foi pela estimada Joseane (ou teria sido dela por ele?). O que se não duvida é que ela é arrimo (com todos os significados que essa palavra possa ter) dele; e um tanto nisso reside a força com a qual ele segue forte para outras conquistas. Afinal, a incompletude do humano nunca é preenchida, mas confortam certas opções, dentre as quais a de um parceiro com o qual se possa contar em qualquer situação: eis a Joseane!
Por fim e por falar em opção, eis um gioiello em forma de lição de vida da grande e inesquecível Helena Kolody:
A todo momento
uma encruzilhada.
Livremente preferimos
um caminho entre os possíveis.
A escolha é vitória
coroada de renúncias.
(KOLODY, Helena. Viagem no espelho. 2ª ed. Curitiba: Ed. da UFPR, 1995, p. 77)
[1] MELMAN, Charles. O homem sem gravidade: gozar a qualquer preço (entrevistas por Jean-Pierre Lebrun). Trad. de Sandra Regina Felgueiras. Rio de Janeiro : Companhia de Freud, 2003, 211p.
[2] Antes dele e para a esfera cível, talvez algo muito similar ocorreu com: COUTINHO, Aldacy Rachid. Invalidade processual: um estudo para o processo do trabalho. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, 461p.
[3] CORDERO, Franco. Guida alla procedura penale. Torino: UTET, 1986, p. 42-3.
[4] O autor não destaca como princípio tal argumento porque “a teoria da invalidade processual, assim como em múltiplos aspectos do processo penal, não pode ser trabalhada a partir de um conceito isonômico formal, como plena igualdade de faculdades processuais. (…) A posição de garantia destaca que a faculdade de arguição da nulidade pelo Ministério Público somente pode ocorrer em casos derradeiros, extremos. Uma vez mais há que se considerar que a parte acusadora e o acusado não se encontram em um mesmo nível, justamente pelo desequilíbrio entre as partes no processo penal.”
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho é advogado, professor titular de Processual Penal da UFPR e coordenador do Núcleo de Direito e Psicanálise do Programa de Pós-graduação em Direito da UFPR. É ainda membro da Comissão de Juristas do Senado Federal que elaborou o Anteprojeto de Reforma Global do CPP, hoje Projeto 156/2009.
Revista Consultor Jurídico, 25 de agosto de 2017, 8h00
http://www.conjur.com.br/2017-ago-25/limite-penal-pensar-genealogia-processo-penal-autoritario