OPINIÃO
Moro finge que não está fingindo que está fingindo que prenderá Lula
18 de abril de 2017, 17h40
“Finge-se que não se está fingindo que está fingindo.” A frase é de Ronald Laing, psiquiatra inglês. Mas parece ter sido feita ao juiz Moro por conta de sua perseguição — desmedida — ao ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva.
Sob o viés psicanalítico, pode-se entender (aceitar é outra questão) o porquê da parcialidade de Moro, afinal, como diz Jacinto Coutinho, “pobre dos juízes com leis assim, que cobram deles uma coisa contra a natureza humana”[1]. Em outras palavras: pobre do juiz Moro, que teve contato com uma interceptação telefônica ilícita entre Lula e Dilma e, mesmo assim, tem de julgá-los, de forma “imparcial” (ou neutra, como querem alguns ingênuos tão bem criticados por Rubens Casara).
Ora, isso é impossível; não é humano, afinal, segundo Jacinto Coutinho, “um ser humano normal, com todos os seus recalques e fantasmas, não consegue apagar suas decisões da memória”[2], salvo em uma situação: amnésia, o que, convenhamos, não é o caso de Moro, muito embora tenha ele, certa vez, “esquecido” que não poderia ter facilitado — ou permitido — a divulgação de produto de crime (leia-se: grampo telefônico contra Lula e Dilma), já que tivera ciência em razão do seu cargo de juiz (artigo 325 do Código Penal).
Por isso, não é de se surpreender que a paranoia (aquela forma de personalidade que, segundo Calligaris, leva o sujeito a encontrar no mundo muito mais sentido do que está lá)[3] tenha feito com que Moro — ainda lá atrás — tivesse se referido à existência de um “grande chefe” da “lava jato”[4].
Não é sua culpa, afinal, comprometido por completo em razão do contato com provas ilícitas, era impossível que ele — tal e qual se faz em computadores — apertasse um botão de “delete”, “suspendesse seus pré-juízos” e… apagasse da memória os quadros mentais, isto é, as hipóteses similares àquelas da paranoia (Cordero e Jacinto Coutinho).
Por isso, quando Calligaris afirma que, num delírio paranoico bem formado, há poucos fios soltos, na medida em que tudo é bem costurado, isso nos permite afirmar, com Anatol Rapoport, que na “lógica” do juiz Moro:
“Se isto é assim, então ocorrerá aquilo, a menos que haja isto outro e, nesse caso, ocorrerá aquilo outro… mas, por outro lado, se isto for assim ou assado, dar-se-á aquilo, o que leva aquilo outro”.
Daí a razão pela qual, segundo Geraldo Prado, a “convicção judicial deve ser situada teórica e idealmente no polo oposto da crença”[5], porque esta última, de acordo com Rui Cunha Martins, “põe em contato uma dimensão de desejo que ela transporta para um determinado resultado”[6].
Isso, a toda evidência, nos permite afirmar, com Warat, que o delírio do direito é rechaçado, por Moro, a partir de outro delírio — muito mais intenso —, o de supor que o sentido do direito deve provir de sua consciência, o que legitimá-lo-ia fazer justiça com a sua caneta[7].
Então, por exemplo, quando Moro, segundo a ConJur, divulgou grampos ilegais[8] de autoridades com prerrogativa de foro[9]; prendeu Lula por algumas horas mediante uma condução coercitiva ilegal; disse que a defesa de Lula era inconveniente; afirmou que poderia cassar a palavra da defesa e, mais recentemente, obrigou que Lula comparecesse à oitiva de 87 testemunhas, mesmo contra a sua vontade[10], ele agiu, de acordo com Calligaris, como um “moralizador raivoso”.
O problema, porém, é que, quando isso acontece, o direito sucumbe à moral. E os resultados são desalentadores — para não dizer desastrosos — porque, como bem nos lembra Calligaris, frequentemente um moralizador raivoso desconta nos outros as tendências e impulsos que, em muitos casos, são seus, mas ele não consegue dominar[11].
Dito de outro modo: o padrão moral que todo “moralizador raivoso” se impõem nunca é respeitado por ele, mas é sempre considerado por ele um padrão que todos devem respeitar[12].
Dessa forma, revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação, é crime, de acordo com o artigo 325 do Código Penal.
Por outro lado, permitir a divulgação dos grampos em face de Dilma e Lula, que foram obtidos em razão do cargo de juiz, é mero descuido, passível de desculpas.
Por isso, com Millôr Fernandes, gostaria de lembrar que “heróis nunca me iludiram”. Sejam eles de direita ou de esquerda. Afinal, todo herói é, ao fim e ao cabo, um “cidadão de bem”. E todo “cidadão de bem” é um falso moralizador.
Então, quando “cidadãos de bem” saem às ruas para linchar furtadores ou para linchar o casal Nardone, eles querem agredi-los (quando não matá-los), porque, como bem lembra Calligaris, essa é a melhor maneira de esquecer que eles, “cidadãos de bem”, no dia anterior, sacudiram seu bebê para que ele parasse de chorar e só pararam porque o bebê… ficou pálido.
O mesmo, diga-se de passagem, pode ser dito em relação aos moralizadores raivosos que esbravejam com gays. No fundo, todos sabem — e eles também, embora não admitam — que, na verdade, tudo isso é fruto de suas tentações pela “fruta”. Por isso, segundo Calligaris, “o apedrejador sempre quer apedrejar a sua própria tentação ou a sua culpa.”
Daí lincha-se o furtador e pede-se foto… com Eike Batista. Por quê? Porque o falso moralizador, como diria Millôr, quando critica a corrupção, está apenas cuspindo no prato que (não) conseguiu comer. O problema é que, quando eles têm o poder da caneta, o resultado é o que se vive hoje: uma barbárie, na qual todos pagam pelos pecados deles, “cidadãos de bem”, que não se aguentam (Calligaris e Jacinto Coutinho).
[1] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Temas de Direito Penal & Processo Penal (por prefácios selecionados). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 134.
[2] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Temas de Direito Penal & Processo Penal (por prefácios selecionados). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 135.
[3] CALLIGARIS, Contardo. Quinta-Coluna. 101 Crônicas. Ed: Publifolha, São Paulo, 2008, p. 99.
[4] http://ftimaburegio.jusbrasil.com.br/noticias/226193032/quem-sera-o-grande-chefe-da-lava-jato-responda-se-for-capaz
[5] PRADO, Geraldo. Prova penal e sistema de controles epistêmicos. A quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. São Paulo: Monografias Jurídicas. Marcial Pons, p. 85.
[6] CUNHA MARTINS, Rui. O ponto cego do direito: the brazilian lessons. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 42
[7] WARAT, Luis Alberto. A Rua Grita Dionísio. Trad. Vivian Alves de Assis, Júlio Cesar Marcellino Jr. e Alexandre Morais da Rosa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p.98.
[8] http://www.conjur.com.br/2015-jun-11/atalhos-condenar-lava-jato-direitos
[9] http://www.conjur.com.br/2016-mar-16/moro-divulgou-grampos-ilegais-autoridades-prerrogativa-foro
[10] http://www.valor.com.br/politica/4940524/moro-obriga-lula-presenciar-os-depoimentos-de-suas-87-testemunhas
[11] CALLIGARIS, Contardo. Todos os reis estão nus. Ed. Três Estrelas, São Paulo, 2013, p. 38.
[12] CALLIGARIS, Contardo. Todos os reis estão nus. Ed. Três Estrelas, São Paulo, 2013, p. 39.
Djefferson Amadeus é mestre em Direito e Hermenêutica Filosófica (UNESA-RJ), pós-graduado em filosofia (PUC-RJ), Ciências Criminais (Uerj) e Processo Penal (ABDCONST). Advogado eleitoralista e criminalista.
Revista Consultor Jurídico, 18 de abril de 2017, 17h40