“a PGR resolveu retroceder no tempo e voltar a ser a “velha promotoria pública””

SENSO INCOMUM

Abuso e inconstitucionalidade/ilegalidade das conduções coercitivas

2 de março de 2017, 8h00

Por Lenio Luiz Streck

Subtema: “Na democracia, não é feio dizer que, onde está escrito X, leia-se X”.

Fiquei sabendo que a OAB nacional ingressará com ADPF contra as conduções coercitivas. Iniciativa importantíssima. Não é possível que as instituições encarregadas de aplicar a lei continuem ignorando a própria lei, substituindo-a por juízos morais e políticos. Mas o busílis não é a ADPF; o busílis é ter que levar isso via ADPF ao STF, face à clareza da redação do CPP. Vou explicar isso melhor.

Faz bem a OAB em lançar mão na jurisdição constitucional. Urgentemente. Sobre a ilegalidade das conduções coercitivas, escrevi um artigo na ConJur que teve mais de 100 mil leitores no ano passado. Agora volto ao tema.

Aliás, em vez da OAB, quem deveria fazer isso, antes de todos, é o procurador-geral da República, encarregado de zelar pelas garantias constitucionais e, em especial, pela legalidade e constitucionalidade do ordenamento. Mas parece que a PGR resolveu retroceder no tempo e voltar a ser a “velha promotoria pública”. Aliás, no parecer na ADPF 395 (ler aqui), o PGR confunde condução coercitiva com medida cautelar. Faz um parecer de 29 laudas para dizer que é possível o poder geral de cautela etc. Mas é disso que trata a ADPF? No parecer, a palavra “cautelar” aparece uma dezena de vezes a mais do que o cerne da discussão: a condução coercitiva. Não há menção ao artigo 218; e só quatro vezes fala do artigo 260. Fala mesmo é de medidas cautelares. Condução coercitiva, para o PGR, é o mesmo que uma medida cautelar menos gravosa que prisão. Ou seja: o parecer faz um tratado sobre a laranja, enquanto o fato a ser discutido é uma banana.

Preocupante, ademais, é o uso inadequado e mal interpretado da ponderação e proporcionalidade (que, ao que tudo indica, são os conceitos alexianos). Não é a primeira e não será a última vez que se faz uma vulgata das teses de Alexy. Aliás — acreditem —, tudo o que o PGR diz sobre ponderação e proporcionalidade pode ser utilizado exatamente pelo lado contrário do que consta no parecer. Na verdade, se Alexy fosse lido corretamente, saber-se-ia que ele divide as normas jurídicas em regras e princípios, nas quais as primeiras se aplicam por subsunção. Ora, em Alexy, os artigos 218 e 260 são regras jurídicas previstas na legislação infraconstitucional; são regras, portanto. E devem ser aplicadas por subsunção. Simples. Não há o que ponderar. Até mesmo se Alexy — com todos os seus problemas — fosse aplicado corretamente estaríamos muito melhores. Para terem ideia do que estou falando, mesmo se admitíssemos que se tratasse de ponderação, Alexy não diz isso que se insinua no parecer (o parecer não refere o nome de Alexy, mas fala em ponderação, proporcionalidade, subprincípio da necessidade; logo…). Aliás, sobre a ponderação, dou, aqui, uma barbada: para Alexy, a ponderação pressupõe uma prevalência prima facie dos direitos individuais sobre os bens coletivos, cuja inversão depende do ônus argumentativo de comprovar a excepcionalidade de determinada situação concreta. Alexy afirma categoricamente (em Der Bregriff und Geltung des Recht) que, entre um direito individual e um interesse coletivo, há sempre a prevalência prima facie do direito individual fundamental. Pode até haver, ao final, prevalência de um interesse coletivo, mas jamais essa prevalência será prima facie. E conclui: “Somente uma teoria política coletivista seria capaz de justificar a prevalência do bem coletivo em relação ao direito individual”. Portanto, tudo ao contrário do que se pretende no parecer.

Pergunto, a propósito: não está na hora de, no Brasil, esses autores (Alexy, Dworkin etc.) serem citados corretamente? Não está na hora de citarem a tal ponderação de uma forma que não inverta o que o autor da tese (Alexy) disse?

Impressiona também que o parecer na ADPF 395 faz um desvio hermenêutico (para dizer o menos) nos artigos 218 e 260. Nenhum dos acórdãos citados no parecer tem a ver com a legalidade/constitucionalidade dos artigos 218 e 260 do CPP. O PGR, em vez de se portar como um magistrado, comporta-se como parte. Ora, um parecer em ADPF não é o mesmo que um parecer em uma causa em que o MP seja parte. Em ADPF ingressada por terceiro, o PGR atua como fiscal da lei, guardião da Constituição. No caso, nitidamente, o parecer parece querer disputar espaço com o impetrante, confundindo-o com a defesa do inquérito policial que gerou a ADPF. O PGR confundiu seus dois corpos: o de parte e de fiscal da lei.

Quando ingressei no MP, cheio de ideias e ideais, recitei Haroldo Valadão (espécie de ídolo dos promotores) na prova de tribuna. Lembro de cor o nariz de cera de minha fala:

Se Montesquieu reescrevesse hoje o Espírito das Leis, por certo não seria tríplice mas quadrupla a divisão de poderes. Ao órgão que legisla, ao órgão que executa e ao órgão que julga, há um novo, o que defende a sociedade e a lei perante a justiça, parta a ofensa de onde partir, seja dos indivíduos ou do próprio Estado.

E eu que acreditei nisso. Durante anos e anos ouvi discursos alardeando que o MP não era mais o velho promotor público. Será?

Nem preciso dizer o que diz a Constituição acerca da liberdade e sobre o direito de somente se fazer alguma coisa em virtude de lei, afora o direito de ir e vir. Todo o artigo 5º da CF pode ser aplicado aqui. As conduções coercitivas, feitas fora do ordenamento, são abusivas. Nada pode ser coercitivo sem prévia intimação. Condução coercitiva é resposta do Estado a uma indevida resistência do cidadão face a uma intimação.

Há dois dispositivos aplicáveis: o artigo 218 (caso de testemunha) e 260 (caso de acusado) do Código de Processo Penal diz que:

Art. 218 – A testemunha regularmente intimada que não comparecer ao ato para o qual foi intimada, sem motivo justificado, poderá ser conduzida coercitivamente.

Art. 260 – Se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença”. Parágrafo único: “o mandado conterá, além da ordem de condução, os requisitos mencionados no artigo 352, no que lhes for aplicável.

Tertius non datur. Não consigo ler algo diferente do que está escrito: a) só poderá ser conduzida a testemunha regularmente intimada e que não tenha motivo justificado; b) o acusado somente pode ser conduzido se não atender à intimação para interrogatório.

Para não sofrer as críticas por “complicar” o direito, deixo de aplicar os modalizadores deônticos de Von Wright para deixar mais lógica a conclusão de vedação de condução sem intimação prévia (se é proibido conduzir, então é obrigatório não conduzir e é permitido não conduzir — Vp=ONp=PNp — V=proibido — verboten em alemão; O=obrigatório; P=permitido). Não há quarta hipótese, aqui. Só para referir. Não preciso de ponderação ou de proporcionalidade.

Textos jurídicos que restringem liberdades devem ser lidos sem analogia e sem ampliações. Leiamos o que está escrito, sem colocar adjetivos e elementos de analogia. Aliás, se o CPP é anterior a CF, mesmo que ele autorizasse explicitamente, teria que ser filtrado hermeneuticamente. Um banho de imersão constitucional resolveria qualquer componente autoritário. Mas nem é necessário. O CPP já diz o suficiente. A lei exige, nas duas hipóteses, intimação prévia. Então, como diz Gadamer, wer einen Text verstehen will, ist vielmeher bereit, sich von im etwas zu sagen lassen (quem quer compreender um texto, deve deixar que o texto lhe diga algo). Não emudeçamos o texto.

Numa palavra, chamando as coisas pelo nome: a condução coercitiva, feita fora da lei, é uma prisão por algumas horas. E prisão por um minuto já é prisão. E não esqueçamos da relevante questão: conduzir coercitivamente pode implicar obrigação de produção de prova conta si.

E não estou sozinho nessa tese de que os artigos 218 e 260 são claros em impedir as práticas atuais. Veja-se o que dizem os ex-integrantes do MP Afranio Silva Jardim, Claudio Fontelles e Álvaro Ribeiro Costa (aqui). E o ex-ministro do STF Nelson Jobim:

“Ela [a condução coercitiva] só é admissível quando alguém se nega a ir em uma audiência em que foi previamente intimado. Mas não se admite que alguém que não foi convocado para depor seja levado coercitivamente para depor”.

Sim, sei que o Supremo Tribunal Federal disse que a condução coercitiva é possível[1]. Mas alto lá. Disse, mas não nos moldes do que estamos discutindo aqui. Cabe(ria) a condução nos termos do que está no CPP. Recusa imotivada, eis o busílis. Não atender a uma intimação: essa é a ratio. E acrescento: o STF não fora, até a ADPF 395 — e agora pela ADPF da OAB — instado para falar da (in)constitucionalidade do artigo 260.

Todas as pessoas que até hoje foram “conduzidas coercitivamente” o foram à revelia do ordenamento jurídico. Simples assim. Assim, de grão em grão vamos retrocedendo no Estado Democrático de Direito. Prendemos por prazo que… já não existe. Conduzimos à força mesmo sem intimação, tanto faz se for para testemunhar ou para ser indiciado. Sem intimação prévia.

Mas, é claro, tudo é feito em nome da moral pública, do clamor social etc. Quando procurador de Justiça, os desembargadores da 5ª Câmara Criminal do TJ-RS e eu fazíamos uma blague: colocávamos a mão no ouvido para ver se ouvíamos o clamor público.

Hoje, cada vez mais, para prender, basta dizer as palavras mágicas: clamor social e garantia da ordem pública. Vamos dar o nome que as coisas têm. Sem receio. Porque temos ao nosso lado a lei e a Constituição. Ou não?

Condução coercitiva fora dos parâmetros legais-constitucionais é suspender a lei. Fiquemos alertas. Filtrar o direito pela moral pode ser bom quando isso atinge os nossos adversários ou inimigos. Mas, amanhã, pode ser você. Estou dizendo isso não porque goste ou desgoste da condução coercitiva. O que eu acho ou a população acha ou o que o juiz acha não importa. Essas “achações” são argumentações morais. Meras opiniões. E a moral não pode corrigir o Direito. Quando vamos aprender isso? Vamos descartar o Direito e no seu lugar colocar as “achações” morais das autoridades? Como tenho dito à saciedade e à sociedade: se a moral pode corrigir o Direito, quem pode corrigir a moral?

Por fim e ainda para deixar isso mais claro: o STF poderia, em vez de dar provimento à ADPF (às duas), fazer uma coisa até mais singela. Simplesmente poderia dizer que os artigos 218 e 260 do CPP, anteriores a CF, foram recepcionados a partir de uma interpretação aferida por sinonímia (algo como “João é careca” é o mesmo que dizer “João é calvo”). Ou seja, o enunciado “para serem conduzidas testemunhas ou acusados, exige-se prévia intimação” tem sinonímia com o enunciado “a condição de possibilidade de ocorrer uma condução coercitiva é a intimação prévia de testemunhas e acusados” ou “se não intimar antes, não pode haver condução à força”. Moral da história: Na democracia, não há mal nenhum em fazer sinonímias interpretativas. Por vezes, simplesmente cumprir a lei pode ser um avanço considerável. Nada mais, nada menos do que aplicar a integridade do Direito prevista no artigo 926 do CPC. Parafraseando Dworkin, trata-se de dois textos (artigos 218 e 260 do CPP) claros que devem ser aplicados não simplesmente porque são leis, e sim porque equiparar a condução coercitiva às medidas cautelares diversas da prisão fere os princípios da presunção de inocência e da proibição de fazer provas contra si mesmo. Não haveria mais integridade no Direito. Apenas raciocínio ad hocs ou pragmatismos.

Numa palavra: dizer que condução coercitiva é o mesmo que medida cautelar alternativa e que, ponderativamente (sic), a condução coercitiva é similar à medida cautelar alternativa menos gravosa que a prisão é o mesmo que admitir um elenco infinito de “medidas alternativas”. Ora, qualquer medida que não seja chicoteamento ou tortura será sempre menos gravosa que a prisão preventiva. Logo, vingando a tese de que condução coercitiva é possível porque entra no “rol” de cautelares menos gravosas, teremos uma violação da legalidade. Interpretação extensiva proibida.

Repito a pergunta: quando é que aprenderemos que juízos morais não devem e não podem corrigir o Direito?


[1] Não vou gastar energia para falar do HC 94.173-BA. Facílimo de fazer o distinguishing.
No caso concreto, a mulher da vítima armou uma armadilha para o suspeito do crime (latrocínio). Face à armação, a mulher avisou a política, que chegou e levou o suspeito à polícia, onde confessou o crime. No que esse caso tem de similar ao que aqui se discute? De todo modo, vale ler o HC 94.173-BA, em que o STF fala das limitações ao uso de condução coercitiva.

Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados:www.streckadvogados.com.br.

Revista Consultor Jurídico, 2 de março de 2017, 8h00

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