SENSO INCOMUM
Cumprir a CF? “Mais triste que as demoras é saber que não vens mais”
Os presidentes dos tribunais de Justiça se reuniram em Brasília. Dali tiraram uma tese, acolhida e apoiada pelo corregedor-nacional de Justiça: o Judiciário não tem nada a ver com a crise do sistema penitenciário. O problema é do Executivo. Já o presidente do TJ de Tocantins proferiu a pérola seguinte: “o Judiciário deve adotar medidas restritas a seu papel, ou seja, o que a Lei de Execução Penal estabelece”.
Bingo. Se é verdade isso, então o presidente do TJ-TO está desmentindo a tese de que o Judiciário nada tem a ver com a crise e o medievalismo do sistema. Vou explicar. O que a LEP estabelece, Excelência? Tudo, menos o que está se vendo (há muitos anos). A LEP é uma ficção. Fosse ela cumprida, senhor desembargador e demais autoridades, não haveria facções. Não haveria rebeliões. Não haveria esse nível de reincidência. Para contestar o desembargador e o corregedor-nacional, vejamos o que diz o ministro Gilmar Mendes:
“Como não tem nada a ver se cabe ao juiz inspecionar a execução penal? Além do que, só ele manda prender e soltar. Se temos essa massa de presos provisórios hoje de quase 50% da população carcerária, é porque o Judiciário mandou prender e não conseguiu condenar ou absolver. Então, a responsabilidade do Judiciário é imensa”.
De todo modo, vou refrescar a memória do presidente do TJ-TO e das demais autoridades: A Lei 7.210/84 estabelece coisas como:
– Não haverá qualquer distinção de natureza racial, social, religiosa ou política. Os condenados serão classificados, segundo os seus antecedentes e personalidade, para orientar a individualização da execução penal.
– Mais: A assistência material ao preso e ao internado consistirá no fornecimento de alimentação, vestuário e instalações higiênicas. O estabelecimento disporá de instalações e serviços que atendam aos presos nas suas necessidades pessoais.
– A assistência social tem por finalidade amparar o preso e o internado e prepará-los para o retorno à liberdade.
– Impõe-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios.
– Ainda: Juiz deve inspecionar, mensalmente, os estabelecimentos penais, tomando providências para o adequado funcionamento e promovendo, quando for o caso, a apuração de responsabilidade; Juiz deve interditar, no todo ou em parte, estabelecimento penal que estiver funcionando em condições inadequadas ou com infringência aos dispositivos desta lei (Bingo);
– O Ministério Público fiscalizará a execução da pena e da medida de segurança, oficiando no processo executivo e nos incidentes da execução (Bingo);
– A Defensoria Pública velará pela regular execução da pena e da medida de segurança, oficiando, no processo executivo e nos incidentes da execução, para a defesa dos necessitados em todos os graus e instâncias, de forma individual e coletiva (Bingo);
– O preso provisório ficará separado do condenado por sentença transitada em julgado; o preso que tiver sua integridade física, moral ou psicológica ameaçada pela convivência com os demais presos ficará segregado em local próprio; o estabelecimento penal deverá ter lotação compatível com a sua estrutura e finalidade (Bingo);
É preciso dizer mais? Eis uma pequeníssima parte do que diz a LEP que o desembargador diz que é com que (somente) o judiciário deve se preocupar. Pois é… It’s the law.
Então? Quem não é responsável? O cidadão é que não. Diz-se que 30% dos presos estão presos indevidamente. Mas, quem os colocou lá? Outra boa fonte: o ex-presidente do STF, Ricardo Lewandoski, que disse prendemos mal, denunciamos mal e condenamos mal. Repito a pergunta: de quem é mesmo a responsabilidade? Sérgio Shecaira diz, na Folha, que o governo, em 2016, dificultou a concessão de indulto até para idosos, tetraplégicos e cegos.
Venho denunciando de há muito que os tribunais da república invertem o ônus da prova nos casos de furto e tráfico. Essa circunstância não influi no número indevido de presos? A propósito: Não vai sair uma diretiva do Conselho Nacional de Justiça avisando que a inversão do ônus da prova é proibida pela lei e pela Constituição Federal? Mais ainda: alguém se deu conta de que, crível o número de 30%, são 180 mil presos colocados indevidamente no “sistema”? Quase 200 mil fazendo pós-graduação no crime. Veja-se: em dezembro de 2008, o ministro Gilmar Mendes dizia em entrevista ao Estadão: 30% dos presos estão recolhidos indevidamente. Repito: isso foi em 2008. Na época, havia 180 mil presos a menos do que hoje.
Ou seja, está na hora de encararmos o problema de frente. Está na hora de vermos também a responsabilidade dos professores de direito, das bancas de concurso e dos cursinhos de preparação. Os promotores, juízes e defensores (e advogados, é claro) não são filhos de chocadeira. Estudaram em algum lugar, leem determinados livros e reproduzem determinada jurisprudência. Pelo visto, estamos com sérios problemas. Se há cerca de 180 mil presos indevidamente, então erramos no mínimo esse quantum de vezes. Alguém dirá: 30% é muito. Está bem. Que seja menos: 20%. E daí?
Por outro lado, se isso é verdade, por que os erros só estariam nos casos de pedidos de preventiva, homologação de flagrantes, determinação de prisões, confirmação de condenações? Como estão sendo feitos os julgamentos dos demais casos? E o problema estará somente na área penal? Não esqueçamos que o novo CPC não está sendo cumprido. Como a LEP.
Será, então, que o problema não está na formação dos “operadores” do “sistema”? Se denunciam mal, prendem mal e condenam mal, será que não estão estudando mal, escrevendo mal, escolhendo mal em concursos e julgando mal em segundo grau? Jabuti não sobe em árvore. Digo isso para olharmos para dentro de nós: daquilo que forjamos, mesmo tendo a nossa disposição a Constituição mais democrática do mundo. Mesmo assim, deu nisso. Logo, temos que reconhecer que fracassamos.
Tenho absoluta convicção de que o furo é mais embaixo. Na formação. Os livros de Direito se transformaram em veículos prêt-à-porter. Que têm vida curta. Porque, depois de empossadas as autoridades, os livros não servem para mais nada. Na verdade, nunca serviram. Mas, no momento em que os livros (livros-que-não-são-do-tipo-resumão) deveriam invadir a mente dos juristas, eles são substituídos pelo pensamento individual. Pelo achismo. Pelo voluntarismo não secularizado. “Entendo que, no caso da prisão preventiva…”. “Entre a lei e minha consciência, prefiro a segunda”. “Não importa o que diz a doutrina”, berrava o ministro. Ou “a subjetividade é inevitável”, diz o outro ministro.
Transformamos o Direito em um jogo de cartas marcadas. Em uma grande Katchanga. Por vezes standard, por vezes a Katchanga Real. Como é possível que um desembargador decrete a prisão — de ofício — de um patuleu qualquer nos autos de um habeas corpus que fora impetrado para lhe dar liberdade? Isto é katchanga. O Direito brasileiro foi katchangado.
Há poucos dias, contestei um juiz que me “admoestara” porque eu, por não ser juiz ou não ter sido, não poderia falar sobre decisão. Dizia ele, sarcasticamente: “quem sabe faz, quem não sabe, ensina”. Pois não é que recebi uma decisão proferida por ele que serve de “lição” (sic)? Na decisão, em audiência, ele destituiu advogado dativo, porque o réu não queria responder as perguntas. Destituiu porque, na opinião dele, juiz, o réu queria confessar e o advogado “não deixava”. E, para ele, juiz, era melhor o réu confessar. Esse “fato” foi objeto de mandado de segurança, com parecer favorável do MP de segundo grau. Infelizmente, com o novo causídico — que “colaborou” com o juízo — o feito transitou em julgado e, por isso, o MS foi julgado prejudicado no TJ de Minas Gerais — o que é discutível, porque se havia nulidade…, bom, deixa prá lá! Resultado: o advogado, destituído, foi desagravado pela OAB (1135/2013-OAB-MG). Moral da história: Como eu não posso falar sobre decisão jurídica, fui apreender com quem sabe. “Quem sabe faz, quem não sabe, ensina”, não é doutor? São, pois, sintomas da doença jurídica que assola o país.
Jabuti não sobe em árvore. Isso tudo que está aí é fruto de muito esforço. Simbolizando aquilo que denunciei aqui dizendo que o exercício da advocacia virou exercício de humilhação cotidiana (com 29.929 compartilhamentos na ConJur), descubro, domingo pela manhã, um vídeo publicado pelo site Justificando, em que se comprova a triste realidade da falta de democracia e vilipêndio de prerrogativas dos advogados, tal qual a decisão acima relatada. O advogado foi humilhadíssimo pela juíza. Oiçam o áudio. Leiam também esta denúncia. E o que dizer do promotor que chamou a vítima de estupro de vagabunda com a conivência da juíza? E o advogado que foi preso — e algemado — por entrar em elevador privativo?
No que transformamos o Brasil? Nisso? Se é “nisso”, fechemos para balanço. Devolvamos as chaves. Repergunto: 28 anos de Constituição mais democrática do mundo e deu nisso? Por que ensinamos Direito desse modo e, por falta de compreendermos o nosso próprio produto — a Constituição — fazemos esse tipo de coisa? O colapso do sistema carcerário não é responsabilidade do MP e do judiciário? É só do Executivo? Ah, já sei: é das Forças Armadas. Pronto. Eis a “solução” inconstitucional. Logo, se esse estado de exceção vinga, não se surpreendam se a exceção de estender para outros campos, se entendem a advertência.
Brasil é assim. Parafraseando Nelson Rodrigues: Autoritarismo não se improvisa; é obra de séculos. Quando vou à livraria ou acesso às redes sociais e vejo o que está sendo produzido e vendido no e ao mundo jurídico, torno-me um pessimista atroz, que, na verdade, é fonte de forte realismo. Semana passada fui a uma delas. Na volta, liguei o rádio do carro e sintonizei (via bluetooth) a Rádio Amália, de Lisboa (gosto de fado) e estava tocando o seguinte fado carriche, feito há mais de 50 anos, intitulado “Guarda-me a vida na mão”. Na letra, há uma frase que retrata o meu receio em relação ao nosso passado e ao futuro que não vem: “Mais triste que as demoras é saber que não vens mais”.
É isso. Mais triste que as demoras da democracia é a certeza de que ela não vem mais. E que nunca virá. Com esse imaginário jurídico que está aí? Mas não vem, mesmo.
Post scriptum: que coisa feia, não? O ministro da Justiça quer gravar os contatos dos advogados com seus clientes. É isso que construímos? E o suprassumo das políticas públicas agora é… o uso da Guarda Nacional. Deu na Folha: Temer quer usar a FN como vitrine política. Bingo! Do couro saem as correias. E agora a solução via Forças Armadas… Trisca… Vai triscando…
Mas, quedemo-nos tranquilos: Ainda tem o mutirão…! Primeiro atiramos os caras de qualquer jeito nas masmorras medievais (o epíteto é do ministro Cezar Peluso); depois, passamos o linimento “pajé”: o mutirão carcerário! Mas não reconhecemos os erros. Ah: mataram mais 26 em Natal. Vejam a foto. Tudo de acordo com a LEP:
Esse é o retrato (aqui a palavra é “a coisa”). Democracia: Mais triste que as demoras é saber que não vens mais!
Cria cuervos y te sacaran los ojos!
Garçom: traz a conta!
Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.
Revista Consultor Jurídico, 19 de janeiro de 2017, 8h00