Depois que passei dos 50 – este ano já vou para 53 – e dado ao meu elevadíssimo apego à existência, constatei que estou mais para lá do que para cá, a considerar que a expectativa de vida no Brasil, para homens, hoje é de 73,1 anos. Resta-me, portanto, 20,1 anos de vida.
Embora sempre tenha adotado todas as “medidas” para desdizer a estatística (atividade física, exames médicos, alimentação adequada, suprimentos, reposições etc.), a verdade é que as estatísticas estão aí, não sou negacionista e já não tenho tanta certeza (aliás, nunca tive) de que a imortalidade é/será possível durante a minha existência ou nalgum dia, que me desculpe o Aubrey de Grey.
Também nem sei mais se tenho ainda interesse pela imortalidade depois de Andy Stark (no livro The Consolations of Mortality) dizer da chatice que seria a imortalidade. Se a ciência da longevidade me conceder anos saudáveis até o fim de aonde quero chegar, já estarei contente. Enfim, ainda não foi possível parar o relógio. Atrasá-lo bem, com mais anos de vida saudáveis, já seria um alento para quem, como eu, quer viver, quiçá, para mais de 100 anos.
Certo é que este “estar mais para lá”, para além de outras atividades que tenho me dedicado em paralelo às do cotidiano, levou-me de volta aos livros que li desde a juventude.
Pensava eu que iria apenas reler tais livros e o que verifiquei é que isso é impossível, embora essa constatação seja óbvia. Óbvia porque desde Heráclito de Éfeso que se sabe que quando voltamos ao rio nada é mais o mesmo, nem o rio, nem as águas, nem os ventos, nem o sol e nem nós.
Com essa nova leitura – ou encontro primeiro na atual fase da vida – constata-se a total ignorância do que lemos ou simplesmente a deslembrança absoluta, como se nunca estivéssemos lá. No entanto, o vivido, o experimentado, o lido, enfim, tudo aquilo que acumulamos, provoca o que Gadamer chama de fusão ou alargamento de horizontes. Acabamos por associar, fundir ou distanciar o que é objeto da leitura presente com tudo o que temos acumulado.
Nesse percurso de reencontros com todos os livros do meu passado encontrei o Humberto de Campos e, especificamente, quando do acesso ao “Os Párias”, deparei-me com o texto “As razões do ‘vira-lata’”.
Lá pela quase metade do texto encontro uma história que, porventura lembrasse do texto, a leitura do passado jamais teria provocado a reação que tive quando acessei a história novamente, ou seja, na primeira leitura não tinha como ocorrer a fusão de horizontes porque eu não tinha conhecimento da “A Revolução dos Bichos”.
A reação do agora foi que, imediatamente, operada a fusão de horizontes, aprecei-me, quase em êxtase, a lançar uma conclusão: George Orwell plagiou Humberto de Campos.
É que pesquisei o texto de Humberto de Campos e a informação que obtive é que ele foi publicado no Diário Carioca, edição de 15 de novembro de 1932. A “A Revolução dos Bichos”, de George Orwell, é de 1945.
Passada a euforia da “descoberta”, imaginei que talvez poderia ser apenas aquelas histórias contadas por todos no passado e que se vão reproduzindo em sucessivas gerações.
Sem saber para onde ir e o que pensar, decidi consultar/provocar uma das pessoas mais inteligentes que conheço que, para além de mestre e doutor e versadíssimo na língua portuguesa, na literatura e na filosofia, é poeta, compositor, cantor, violonista, professor e jornalista, o Ivandro Coelho.
Antes de continuar, ao trecho do texto de Humberto de Campos:
“As razões do ‘vira-lata’
(…)
– Há mais de um século, os cachorros de raça eram senhores absolutos de todos os cães, exercendo sobre eles direitos de vida e de morte. Quando morria um cão de luxo que governava os outros, o filho lhe tomava, imediatamente, o lugar, e todos os outros cães lhe prestavam obediência. Os vira-latas’ andavam dia e noite por vales e montes, à procura de comida para eles. Viviam de fita no pescoço, rodeados de cadelinhas mimosas, perfumadas, todas de raça. E o resto dos cães trabalham para eles. Tinham nomes numerados, para não se confundirem: Totó I, Totó II, Totó III, Lulu XI, Lulu XII, Lulu XIV; Mastim VII, Mastim VIII, Mastim IX; Mastim X; Buldog I, Buldog II e por ai adiante. Para que eles vivessem felizes, morriam milhões de ‘vira-latas’. Até que, há mais de um século, em um país da Europa, achando-se no trono um cachorro de luxo, que usava o nome de Lulu XVI, os ‘vira-latas’ da cidade se revoltaram, mataram o Lulu, e viraram a louça toda dentro da casa, metendo o focinho em todas as caçarolas que encontraram. Nos outros países fizeram o mesmo. E reinou uma alegria sinistra entre todos os cachorros pobres! Sucedeu, porém, que alguns ‘vira-latas’, abusando da situação, tomaram conta das casas dos cachorros de raça, e começaram a escravizar os antigos companheiros de miséria. E renovou-se a situação; os mais espertos passaram a considerar-se nobres, e os ‘vira-latas’ continuaram a ser o que sempre foram, e, o que é pior, a sentir-se mais desgraçados do que nunca.
(…)”
Enviei esse trecho do texto para Ivandro. Veja-se o breve diálogo (pelo Whatsapp) que durou apenas alguns minutos desde a provocação até a última fala:
Marcos Coutinho Lobo: O que te parece isso? Histórias contadas por todos no passado ou Orwell plagiou a ideia de Humberto de Campos?
Ivandro Coelho: São vozes que se entrelaçam no tempo.
Ivandro Coelho: Vejo assim. As “imagens simbólicas” são arquétipos e estão no imaginário desde os primórdios… muda só o timbre, a forma de dizer…
Marcos Coutinho Lobo: Compreendo. Mas aí temos uma história contada por Humberto de Campos em 32 e Orwell vem com revolução dos bichos em 45 com, praticamente, a mesma história.
Ivandro Coelho: Entendo, mas a história em si não é o mais importante, porque trata-se de uma metáfora.
Ivandro Coelho: O signo é algo que diz alguma coisa que está ausente ou subentendida… não é uma linguagem direta… eu penso que a superfície textual nesse caso, não é o mais importante.
Ivandro Coelho: Embora seja nítida uma coincidência no uso das palavras… pode ser plágio, mas aí é matéria de arqueologia linguística.
Marcos Coutinho Lobo: Verdade. Mas achei incrível a coincidência.
Ivandro Coelho: Sim. Com certeza.
Bem, Ivandro sempre está preparado para a escuta e na resposta se expande, abre clareiras.
Não é possível afirmar, com precisão, que é correta a minha primeira impressão de que George Orwell plagiou Humberto de Campos. Mas, apesar de “incrível a coincidência”, “pode ser plágio, mas aí é matéria de arqueologia linguística.”.
Com Ivandro Coelho, convido a todos para apresentarem histórias que conheçam e que tenham a mesma ideia-narrativa a fim de que possamos, enfim, afirmar que George Orwell plagiou Humberto de Campos, ou que são histórias por todos sempre contadas, ou que “são vozes que se entrelaçam no tempo”.
À arqueologia linguística.