“A verdadeira diferença não está entre quem crê e quem não crê, mas entre quem se supera a si próprio para servir a valores mais elevados e quem, ao contrário, traz tudo de volta para si mesmo”.
A opinião é do teólogo italiano Vito Mancuso, ex-professor da Universidade San Raffaele de Milão e da Universidade de Pádua, em artigo publicado por La Stampa, 08-11-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Procuro uma ética para estes dias difíceis que estamos vivendo, ou talvez melhor, sofrendo.
Sinto que temos uma necessidade extrema, eu diria desesperada, dado o desespero que permeia as mentes e às vezes chega a apertar nossas entranhas. Mais do que a energia do gás russo ou daquela do sol e do vento; mais do que a enésima vacina; mais do que uma lei eleitoral que finalmente funcione gerando governos estáveis; mais do que qualquer outra urgência econômica, social e política, acho que precisamos de ética. Acho que só a água é mais urgente, aquela água fonte de vida de que Francisco de Assis dizia “e muito útil e humilde e preciosa e casta”.
A ética é a água da nossa alma, sem a qual ela seca e acaba morrendo. Quantas almas mortas existem em corpos ainda vivos que vagueiam por nossas cidades?
Às vezes, por esta minha exigência, sinto-me como uma voz que clama no deserto: “vox clamantis no deserto”, como diz o Evangelho; ou como o louco de Nietzsche que acendeu uma lanterna em plena luz do dia e começou a procurar Deus na praça do mercado, provocando os mais divertidos risos: “Ele está perdido como uma criança?”
Na verdade, não sei quão atual e compartilhada é minha busca de ética: às vezes tenho a impressão de que interesse a poucos, às vezes, ao contrário, a muitos. Quando não estou errado? Quando acho que a necessidade de ética é ignorada pela maioria? Ou quando sinto que há muitos de nós que têm essa necessidade de não se sentirem mais entre nós “estrangeiros morais”? Geralmente costumo pensar que não somos poucos a estar “em busca da moral perdida”, como escreveu Eugenio Scalfari.
Acredito que muitos de nós querem assinar o manifesto em forma de tirada irônica de Alessandro Bergonzoni: “Sou a favor da cirurgia ética: é preciso refazer o juízo”. Sim, cirurgia ética! Mas como se refaz o juízo? Que cirurgião procurar? É conhecida a resposta com que o louco de Nietzsche silenciou aqueles que zombavam dele: “Para onde foi Deus? Já lhes direi! Nós o matamos: vocês e eu! Somos todos seus assassinos!”. Depois explicando as consequências assim: “Não erramos como que através de um nada infinito? Não nos envolve o sopro do espaço vazio? Não está mais frio? Não advém sempre novamente a noite e mais noite?”.
Pouco mais de meio século depois, Heidegger comentava: “O mundo suprassensível dos fins e das normas já não desperta e não sustenta mais a vida. Aquele mundo perdeu por si mesmo a vida: está morto. Este é o sentido metafísico da afirmação ‘Deus está morto’”. A morte de Deus, portanto, equivale à morte do Bem, a morte da ética entendida como o valor mais alto pelo qual viver.
Já ouço a objeção: “Mas há muitos ateus que são pessoas eticamente exemplares!”
Verdade, eu respondo. Desde sempre estou convencido de que a fé em um Deus transcendente não é necessária para ser bom, verdadeiro, justo, assim como desde sempre constato que há pessoas que dizem ter fé em Deus e regularmente destroçam a ética. Mas a questão não é a fé na existência de um ente pessoal e transcendente chamado Deus; a questão é, para retomar Heidegger, “o mundo suprassensível dos fins e das normas“.
Vou tentar traduzir a questão existencialmente dirigindo-me ao leitor: você acha que para você existe algo mais importante do que você? Mais importante, digo, do que seu sucesso e seu prazer? Você conhece alguma coisa diante da qual sente que deve parar e conformar a ação? Existe algo indisponível para você, em relação ao qual é você que se coloca à disposição? Sim, não? Em caso afirmativo, chame como quiser este algo mais importante, talvez utopia, lei moral, beleza, verdade, ciência, justiça, ideal político, talvez até Deus; o ponto essencial, porém, é que você viva por um valor que exceda o horizonte de seu simples eu, e seus objetivos e suas normas para você derivem de outro lugar. Se for assim, você conhece algo mais forte e merecedor do que você, pelo qual você decide o que deve fazer e o que não deve fazer, então você não é um sistema fechado em si mesmo, mas um sistema aberto. E foi para denominar essa abertura de sua vida que os seres humanos de todas as civilizações passaram a falar do divino, de qualquer maneira o concebessem, seja politeísta ou monoteísta, masculino ou feminino, pessoal ou impessoal.
Portanto, é necessário que cada um responda à pergunta sobre sua própria consciência perguntando-se se reconhece ou não um valor mais importante do que si próprio. A verdadeira diferença não está entre quem crê e quem não crê, mas entre quem se supera a si próprio para servir a valores mais elevados e quem, ao contrário, traz tudo de volta para si mesmo.
Um deus imanente
A ética nasce aqui: a partir do sentimento de um valor mais alto que o eu. Por isso se apresenta estruturalmente ao imperativo e sem o imperativo simplesmente não existe, mas na melhor das hipóteses cede lugar a atitudes como cálculo, utilidade, interesse, compromisso, adequação, bondade e, no pior dos casos, apenas às vontades e aos caprichos do eu. Para que haja ética em sentido próprio é preciso que haja a percepção de estar diante de algo mais importante do que o próprio interesse pessoal e o desejo de obedecer a isso: como a voz do daimon que Sócrates ouvis dentro de si e que lhe ordenava o que não fazer (“É como uma voz que me dissuade, quando se manifesta, de fazer o que estou prestes a fazer”); como a voz divina que Moisés no Sinai ouviu dentro de si e que o levou a escrever as duas tábuas da lei com os dez mandamentos; como o imperativo categórico de Kant; como o princípio de responsabilidade de Jonas.
Esse estatuto peculiar da ética também foi reconhecido com acuidade por Nietzsche, o maior adversário da ética e sua primazia com quem travo há anos minha batalha pessoal: “Ingenuidade, quase como se sobrasse ainda uma moral quando falta um Deus que a sancione! A ‘vida após a morte’ é absolutamente necessária, se a fé na moralidade for preservada”. A vida após a morte: como já observei, este conceito não é necessariamente para ser entendido em um sentido físico ou metafísico, o essencial é que seja percebido em um sentido existencial, concebendo-o como um horizonte de valor superior em relação ao imediato interesse pessoal. É possível não acreditar na vida após a morte como morada de um Deus transcendente, e ainda assim perceber a experiência de um além vida de valor que leva à superação de si mesmo: e é justamente nessa autossuperação que a condição indispensável, sine qua non, da ética consiste. Ela nasce da percepção de estar na presença de um valor mais importante do que o interesse imediato pessoal, por exemplo na esfera política quando a proteção do bem comum é privilegiada sobre o aumento populista dos consensos. Para que haja ética, pode-se prescindir de um Deus transcendente, mas não de um deus imanente. Mas como estamos hoje nesse aspecto?
(https://www.ihu.unisinos.br/623741-uma-etica-que-nos-cure-do-ego-artigo-de-vito-mancuso)