Elogio ao diálogo civilizado

O palco, o cadafalso e o interesse comum, escreve Paula Schmitt

A conciliação como ato de coragem

Eduardo Jorge é um exemplo positivo

Como Daryl Davis enfrentou a KKK

O valor da política do convencimento


Eduardo Jorge (PV), vice na chapa de Marina Silva em 2018, é um dos exemplos da “política do convencimento”Sérgio Lima/Poder360 – 4.ago.2018


08.abr.2021 (quinta-feira) – 5h50

Na semana que passou me apareceu um fortuito exemplo para a coluna de hoje. Eu tinha postado um tweet em que falava da honestidade intelectual do Eduardo Jorge, vice-candidato na chapa da Marina Silva na eleição passada, e mostrei uma entrevista que ele deu ao movimento Livres.

Nessa entrevista, Eduardo foi perguntado sobre o fato de que nem seu próprio filho votou nele no primeiro turno das eleições. Em vez de se constranger, mudar de assunto, refutar ou mesmo mentir, ele dobra a aposta e diz que o filho que não votou nele foi exatamente o mais politizado. Ainda bem que ele tem mais filhos, disse ele, porque assim ao menos na própria casa ele conseguiu ganhar no primeiro turno.

Sem se armar para uma defesa antecipada, Eduardo Jorge conquista os entrevistadores.

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A parte emblemática dessa história vem das reações que o tweet causou. Com algumas exceções, a maioria foi de respeito, apreço e até admiração –principalmente por gente que se considera de direita. É possível ver cada um desses comentários clicando no tweet em questão e vendo os tweets abaixo dele (os “replies”) e aqueles que o citaram, encontrados no link na própria postagem dizendo “quote tweet” ou “tweet citado”.

Copio aqui algumas das respostas:

“Realmente [Eduardo Jorge] merece estar entre aqueles 594 pra compor um legislativo sensato que construa um futuro razoável. O problema é que pessoas do calibre dele concorrem entre si em vez de tomar espaço dos ineptos e corporativistas.”

“Adoro esse cara, principalmente pela sinceridade e pela maneira natural com que se expressa. Tenho uma opinião mais libertária sobre ética, ele é mais Estado…  Ele é sem dúvida a figura mais lúcida da esquerda brasileira.”

“Difícil encontrar alguém mais coerente que esse homem. E não sou de esquerda. Tenho muito respeito por ele.”

“Precisamos de mais representantes assim, de todos espectros! O que mais faz falta nesta terra é honestidade e vontade de progredir! O resto se ajeita, diferenças honestas são bem vindas.”

“Só ele e Gabeira assumiram que o que queriam na década de 60 era implantar uma ditadura…do proletariado. Pela sinceridade deles, foram “cancelados” pelos esquerdófilos mais radicais.”

Recebi também um link para uma entrevista em que o Eduardo Jorge fala da sua participação em um partido comunista. Essa sim foi uma demonstração de honestidade intelectual indubitável:

“Nós éramos contra a ditadura militar, mas éramos pela ditadura do proletariado. É preciso dizer a verdade toda.”

“O Stalin e o Hitler disputam pau-a-pau a medalha de ouro de genocidas na história recente. E o Mao-Tse Tung vem ali na medalha de prata ou bronze.”

“Eu praticamente saí de uma formação católica cristã muito rigorosa, e com 17 ou 18 anos eu me converti a essa outra religião, atéia, que era o marxismo-leninismo. Naquela época eu não sabia que era religião, depois que eu fui descobrir. É uma religião total –tem santos, tem profetas, tem fé.”

“Depois me tornei pior ainda –passei a ser um guevarista, que é uma coisa mais violenta que o leninismo.” “Eu continuo de esquerda sim, mas eu não sou fóssil.”

Daí um tuiteiro anônimo que me segue há anos, e que escondido no anonimato pode ser dar ao luxo de ser tão radical quanto quiser, veio zombar do meu conhecimento, ou ausência dele, e acabou servindo como um excelente exemplo do que eu vou falar a seguir: “A Schmitt entende tanto de política que acha que o Eduardo é de esquerda”.

É sobre isso a coluna de hoje: sobre a “pureza” ideológica que faz com que 2 lados em conflito percam tudo, em detrimento do diálogo em que ambos os lados ganham ao menos um pouco. Mas, mais do que isso, esta coluna quer questionar a própria premissa de que política é conflito, porque ela leva a uma única conclusão lógica: que um dos lados é obrigado a perder.

Em minhas andanças por essa vida, e até nos países que viveram guerras recentes, percebi que as pessoas têm mais objetivos políticos em comum do que o contrário. Quase todos nós queremos transporte público de qualidade, crianças na escola e bem alimentadas, segurança, saúde, moradia para todos, justiça, liberdade. Os meios para chegar a isso muitas vezes divergem, mas o fato de o objetivo ser comum deveria desencorajar a ideia de disputa, para encorajar o diálogo. Porém, neste nosso mundo arficialmente criado onde conflitos rasteiros e irrelevantes são magnificados no coliseu que virou a vida pública, o caminho do meio e os políticos sensatos e conciliadores serão cada vez mais relegados à invisibilidade. Na luta-livre em que se transformou a política de hoje, onde até amigos que partilham da mesma mesa fingem se odiar para o delírio da platéia, confunde-se dissenção com trabalho, e falta de consenso com obstinação louvável.

Qualquer pessoa que negocia sabe: se um quer vender por 100 e o outro quer pagar 10, os 2 juntos estarão mais satisfeitos concordando com 50 do que estarão com quaisquer das opções iniciais. Vale sempre lembrar: nessa guerra entre partidos, que no fundo partilham de tantos objetivos, quem vence é o mercenário que vende armas para os 2 lados da trincheira, ou o mancheteiro que vive desse circo e pergunta se uma decisão do STF é “uma derrota para Bolsonaro” em vez de perguntar se ela é uma vitória para você. Se você não é esse mercenário, você provavelmente está perdendo a luta e nem sabe.

Quem morou em países divididos por religiões aprende algo muito revelador, mas que parece contra-intuitivo: que o maior inimigo de judeus, ou cristãos, ou muçulmanos, não são pessoas de outra religião, mas pessoas extremas da sua própria. Um judeu moderado e secular tem às vezes mais em comum com um muçulmano mediano e secular do que com um judeu Haredim cuja esposa raspa a cabeça para nunca correr o risco de revelar seu cabelo. O mesmo acontece com o muçulmano médio, que tem mais em comum com um cristão mediano do que com um muçulmano do hezb-et-tahrir.

Mas estamos criando um mundo onde só existe espaço, ou representação, para os mais extremos e distantes, aqueles mais irreconciliáveis que garantem a continuidade dessa luta livre. Pessoas de fala mansa e pensamento maleável, aquelas que criam pontes entre torcidas opostas e assim abrem mão da adoração desmiolada de quaisquer das duas, estão com sua temperança sacrificando a fidelidade canina dos que pensam mais com o rabo do que com a cabeça, e assim perdendo espaço e visibilidade. Mas quem perde mesmo somos nós: aqueles que precisam do transporte público, da creche, da rua limpa, do hospital, da polícia, do bombeiro.

Eduardo Jorge foi 1 dos principais responsáveis pela lei dos medicamentos genéricos –algo que beneficia a todos nós, e que só faz parte das nossas vidas porque alguém que tinha pouco ego e muita grandeza de espírito foi humildemente batendo de porta em porta no Congresso Nacional, pedindo “só 5 minutinhos da sua atenção” para contar uma história, usar bons argumentos e com gentileza e razão convencer deputados e senadores ao mérito da sua ideia.

Isso, senhores, é política. E isso, senhores, é um líder de fato. Liderar uma horda de fanáticos não é ser líder –é apenas ser caolho em terra de cego. O líder de verdade é aquele que faz o cego enxergar o que antes não conseguia ver.

Um tempo atrás, num lapso inexplicável de lucidez, eu ilustrei para um amigo decepcionado com mais uma relação amorosa por que certas relações duravam e outras não: a relação que dura, tentei explicar, é aquela em que os 2 agem como quem joga frescobol, não tênis. No amor, como no frescobol, a partida depende de que um ajude o outro a acertar: o cara que sabe menos joga uma bola ruim, mas o outro que sabe mais vai lá e pega a bola ruim com esforço, cuidando pra jogar de volta bem na mão do parceiro e assim favorecer uma bola melhor na próxima raquetada. E assim vai: quando um erra no lance, o outro acerta na resposta.

Em outras palavras, a relação bem-sucedida é aquela na qual os participantes se ajudam mutuamente. E quando esse jogo representa a vida de um país e de sua sociedade, é essa pessoa que quero como parceiro e líder: alguém que me ajude a jogar melhor, e facilite a vitória do maior número de pessoas, com o menor número de perdedores possível.

Quando eu fui questionar um policial truculento que estava abordando um rapaz inocente, preto e pobre, eu comecei estendendo a mão para o policial e dizendo “sou admiradora do trabalho de vocês.” Seria fácil pra mim parecer corajosa, e ir atacando o policial pela sua arbitrariedade –certamente a reação iria ser contra o cara preso, não contra mim. Em geral eu sou assim mesmo: zero resultados, mas orgulhosa por ter falado o que eu penso. Dessa vez, contudo, olhei mais para o rapaz que precisava de ajuda do que para mim mesma, e ignorei meu instinto de fazer daquela situação o que seria um palco pra mim, e um cadafalso para o rapaz. Meu objetivo era apenas que ele fosse liberado, e para isso eu engoli o que talvez fosse correto para fazer o que era certo.

Assim também é o trabalho desse homem aqui, o músico negro Daryl Davis, que consegue convencer membros do KKK a serem seus amigos, e vai assim destruindo o preconceito da forma mais duradoura e contagiosa que existe. Vários membros do KKK deixaram a organização depois de conhecer o cara. Imaginem isso. Deixo aqui um link onde vou incluir uma tradução de um artigo do The Guardian sobre o Daryl Davis. E termino esta coluna com um um disclaimer e uma revelação de interesse: se o Eduardo Jorge for candidato a deputado, presidente, senador ou síndico do meu prédio, o meu voto será dele.

Autores

Paula Schmitt

Paula Schmitt

Paula Schmitt é jornalista, escritora e tem mestrado em ciências políticas e estudos do Oriente Médio pela Universidade Americana de Beirute. É autora do livro de ficção “Eudemonia” e do de não-ficção “Spies”. Venceu o Prêmio Bandeirantes de Radiojornalismo, foi correspondente no Oriente Médio para o SBT e Radio France e foi colunista de política dos jornais Folha de S.Paulo e Estado de S.Paulo. Publicou reportagens e artigos na Rolling Stone, Vogue Homem e 971mag, entre outros veículos. Escreve semanalmente para o Poder360, sempre às quintas-feiras.

https://www.poder360.com.br/opiniao/midia/o-palco-o-cadafalso-e-o-interesse-comum-escreve-paula-schmitt/

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