IDEIAS DO MILÊNIO
“Precisamos de dinheiro para viver, mas não é isso que dá significado à vida”
3 de março de 2019, 10h45
Entrevista concedida pelo filósofo Roman Krznaric, autor de Carpe Diem: Resgatando a Arte de Aproveitar a Vida, ao jornalista Marcelo Lins para o Milênio — programa de entrevistas que vai ao ar pelo canal de televisão por assinaturaGloboNews às 23h30 de segunda-feira, com reprises às terças (4h05).
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Há mais de dois mil anos, o poeta Horácio enfiou no final de um poema, em meio a decadência do Império Romano, uma frasezinha: carpe diem, que em latim queria dizer “aproveite a colheita”, mas pode ser traduzido também como “aproveite o dia”, ou “aproveite o momento”. Mais de dois mil anos depois, a frase virou pop, tema de camiseta, tema de slogan, inspirou o marketing, a propaganda, e foi parar na capa do livro do autor australiano radicado na Inglaterra, Roman Krznaric: Carpe Diem: Resgatando a Arte de Aproveitar a Vida. E o Roman é o nosso entrevistado do Milênio hoje.
Marcelo Lins — Nós conhecemos muitas figuras históricas importantes — políticos, artistas e até às vezes cidades e países — que ganharam biografias, mas nunca ouvi uma frase, uma expressão, um lema como “carpe diem” que tivesse sua própria biografia. Quando você teve essa ideia e por quê?
Roman Krznaric — É interessante pegar um conceito e analisar sua história. Se você buscar ‘carpe diem’ no Google, obterá 25 milhões de resultados. Mas o que de fato sabemos sobre isso? Tive a ideia de escrever o livro quando estava subindo a escada da minha casa em Oxford, na Inglaterra, segurando a biografia de um famoso escritor britânico de relatos de viagens dos anos 1930 chamado Patrick Leigh Fermor. Ele foi um cara que viveu uma vida ‘carpe diem’ incrível aproveitando o momento, aproveitando oportunidades. Ele foi a pé da Holanda à Turquia nos anos 1930. Na Segunda Guerra, ele sequestrou um general alemão quando era do exercito britânico. Fiquei tão animado lendo o livro que de repente pensei: ‘Por que quero ler sobre um cara que aproveitou a vida ao máximo? Por que não vivo a minha vida assim?’. Passei a vida lendo e escrevendo livros sem contato direto com a vida. Achei que precisava entender esse conceito.
Marcelo Lins — E uma coisa que chamou minha atenção foi a resiliência dessa expressão, que tem mais de dois mil anos e foi escrita em circunstâncias muito diferentes das de hoje, mas seu significado foi usado ao longo da História para todo tipo de finalidade. Pode significar ‘aja agora’, mas também algo como ‘compre agora’, ‘assista agora’, ‘faça agora’. No livro, você diz que a expressão foi sequestrada ao longo da História. Quem são os responsáveis por esse crime?
Roman Krznaric — É um crime mesmo, o grande crime existencial de nossa época, o sequestro de ‘carpe diem’. Como você disse, a expressão original foi cunhada pelo poeta romano Horácio, e nos dois últimos versos de um poema curto ele escreveu em 23 a.C.: ‘Enquanto falamos, o tempo invejoso passa voando. Aproveite o dia e deixe o mínimo possível para o amanhã’. E nesses dois versos ele fez a grande pergunta da jornada humana, que é: ‘como devemos viver dada a realidade de nossa mortalidade?’. Na minha camiseta lê-se ‘morte’ e ‘liberdade’. Carpe diem é isso. O tempo está passando, a morte vai nos levar, então como usamos nossa liberdade? Como somos os autores de nossa própria vida? Mas, como você disse, essa frase é usada até hoje. É um tipo de marketing, sim. Estou com minhas meias especiais ‘carpe diem’: ‘Aproveite este dia ao máximo, p…’. Faz parte da minha inspiração. Mas a frase foi sequestrada. Um dos sequestradores foi a cultura digital. Antes de vir ao Brasil, pesquisei um pouco sobre a cultura digital brasileira e descobri algo incrível: o brasileiro médio passa 3 horas e 43 minutos nas redes sociais diariamente. Isso significa que, quando você tiver 75 anos, terá passado nove anos olhando para uma tela. Isso é o oposto de aproveitar o dia, é viver a vida de forma indireta. Não é viver a sua vida, é ver outras pessoas vivendo a vida delas.
Marcelo Lins — E você acha que é possível que as pessoas aprendam a aproveitar o dia, o momento, a fazer mais coisas em vez de simplesmente assistir à vida passando?
Roman Krznaric — Acho que todos podemos melhorar na arte de aproveitar o dia. Se um dos sequestradores é a cultura digital, a atitude óbvia é iniciar uma dieta digital. Se você for almoçar na minha casa, eu e minha mulher lhe pediremos para deixar seu celular numa caixa na entrada. Se nossos filhos nos flagrarem usando o celular, podem nos dar uma multa de 10 centavos de libra. São pequenas formas de tentarmos escapar da cultura digital, mas acho que a lição mais profunda é perceber que isso é um vício.
Marcelo Lins — Então se nós acreditarmos ser possível aproveitar o momento e deixar as redes sociais de lado por um tempo, ainda é possível também, nesta era de hipercomunicação na qual vivemos, nesta era da distração, resgatar outros valores básicos, como solidariedade, fraternidade, amizade e outros?
Roman Krznaric — Acho que a cultura digital é um desafio imenso para a criação de comunidades, de solidariedade e empatia. Também escrevi um livro chamado O Poder da Empatia na edição brasileira, e nesse livro eu analiso muitas formas de construção de comunidades. É muito difícil fazer isso on-line ou usando a tecnologia, mas existem exemplos fantásticos. Em Israel e na Palestina há um projeto chamado Linha Telefônica Hello Peace. Usam uma tecnologia obsoleta chamada telefone e divulgam um número gratuito pelo país. Qualquer israelense pode ligar para esse número para falar com um palestino desconhecido e conversar sobre qualquer assunto durante meia hora. Os palestinos também ligam para falar com israelenses. Nos primeiros cinco anos de operação, mais de um milhão de ligações foram feitas para a linha. Imagine se usássemos as redes sociais para promover esses tipos de conexões entre pessoas a favor e contra as mudanças climáticas, ou de um dos dois extremos do espectro político. Vamos tentar criar essas conversas, porque sociedades não funcionam bem quando se baseiam em ódio e desconfiança. Acho que há potencial para a cultura digital, mas as pessoas me perguntam: ‘Não podemos inventar um app de empatia? Algo que conecte as pessoas?’. Às vezes eu penso: ‘Nós somos esse aplicativo!’. Nós fomos projetados para a convivência e a solidariedade. Estamos entre os mamíferos mais sociáveis, então aproveitemos isso conversando uns com os outros.
Marcelo Lins — Talvez seja uma questão de reformular a marca, de dizer que você é um aplicativo de empatia em 3D e que o vende ou o aluga.
Roman Krznaric — Genial! Pode ficar com a ideia.
Marcelo Lins — E você mencionou algumas vezes em sua resposta anterior a palavra ‘empatia’. Por que acha que hoje em dia ela é quase uma tendência? A empatia era vista, digamos, como um direito civil há algum tempo e agora as pessoas acham que empatia é algo de que todos precisamos para viver melhor. Por quê?
Roman Krznaric — A empatia tem a ver com a arte de se colocar no lugar de outra pessoa, de ver o mundo pelos olhos dela. É muito diferente de sentir pena de alguém, é tentar imaginar como é ser você. E um dos motivos para a atual popularidade desse conceito é que a neurociência descobriu que nosso cérebro é empático. Em parte, a empatia é popular porque nos mostra um outro lado nosso. Não somos só criaturas individualistas e egoístas. Somos programados para cooperar e sentir empatia.
Além disso, estamos numa era de crescente desconfiança. Em quase todos os países do Ocidente e outros há queda de confiança social e de empatia. Os motivos são muitos. Tem a ver com as redes sociais, onde você pode, anonimamente, ser horrível com outras pessoas em comentários e tal, tem a ver com a ascensão das cidades e a fragmentação de comunidades. As pessoas sequer conhecem os vizinhos. Se você quer uma cura para a falta de empatia, converse com um estranho pelo menos uma vez por semana. Com o cara que te vende o jornal toda manhã, com o bibliotecário tímido que mora no seu andar. Pessoas desconhecidas, mas é preciso ir além do papo superficial. É preciso ter um pouco de coragem ‘carpe diem’ para embarcar em conversas arriscadas. Conversar com as pessoas sobre o amor, sobre a morte, sobre a família ou até sobre política.
Marcelo Lins — Ainda vamos voltar aos seus projetos, mas, já que o assunto é empatia, fale do Museu da Empatia.
Roman Krznaric — Sim, eu tive essa ideia de que a empatia não deveria ser algo para somente lermos nos meus livros. Deveríamos tentar praticá-la. Então, criei algo que chamamos de Museu da Empatia, e fazemos muitas exposições. ‘O que é um museu de empatia?’. Uma de nossas exposições se chama A mile in my shoes. Nós a trouxemos para São Paulo no ano passado, onde recebeu o nome de Caminhando em seus sapatos. É uma caixa de sapatos gigantesca. É a primeira sapataria empática do mundo. Você entra e alguém lhe dá um par de sapatos do seu tamanho, mas pode ser de alguém que você jamais conheceria: alguém que passou 14 anos preso, um profissional do sexo, um juiz travesti, um investidor, quem seja. E você caminha com aqueles sapatos enquanto escuta uma narrativa da pessoa falando sobre sua vida. Você ouve uma história da vida dela em suas próprias palavras. É muito simples, mas muito poderoso. Você se sente na pele da pessoa. E as histórias são surpreendentes. Há um refugiado que não menciona ser um refugiado afegão. Ele só fala de amor. O poder está aí, em desafiar preconceitos e pressupostos. Todos nós julgamos as pessoas, sua aparência, como fala, essas coisas. E o Museu da Empatia serve para explodir nossos preconceitos.
Marcelo Lins — Você foi chamado ou taxado de filósofo social, de filósofo pop, e seus livros às vezes são encontrados nas prateleiras de autoajuda aqui no Brasil. Como você descreveria o seu trabalho e qual é a relação dele com organizações como a Oxfam e a ONU?
Roman Krznaric — Eu detesto o conceito de autoajuda. Ele é tão individualista! Aristóteles, na Grécia Antiga, escrevia livros de autoajuda, ou seja, livros sobre como viver. Mas não eram apenas sobre mim, mim, mim, sobre meus estresses e problemas, tratavam de como podemos ser, tanto na vida privada como na pública, pessoas e cidadãos melhores. Para mim, autoajuda na verdade significa ética tanto quanto a busca pelo prazer e tal. Em todos os meus livros, eu tento juntar duas coisas. Se você for entrar no meu escritório, no meu quartinho cheio de livros, na parede verá dois círculos com uma interseção. Um deles diz ‘a arte de viver’ e o outro diz ‘mudança social’. É na interseção dessas duas coisas que tento trabalhar. Para mim, a empatia é um assunto que me permite entender minha mulher e meus filhos e melhorar minhas relações, mas também serve para mudar uma sociedade. Eu sempre tentei levar esse meu trabalho para organizações maiores, como por exemplo a agência de ajuda internacional Oxfam. Trabalho com eles para tentar tornar a empatia uma disciplina escolar. Vamos ensinar inteligência emocional. E tentar mostrar aos governos que uma aula de empatia é tão normal quanto uma de matemática ou literatura.
Marcelo Lins — Há um ditado no Brasil, acho que tem origem espanhola, que diz: “Se você trabalha demais, não tem tempo de ganhar dinheiro. Se você tem dinheiro, não tem tempo de trabalhar”. Você acha que, em relação à empatia, e para aprender a viver uma vida melhor, é possível conseguir isso mesmo trabalhando tanto, como a maioria das pessoas precisa para fechar as contas no final do mês?
Roman Krznaric — Esse é um assunto difícil porque, para muita gente, o artigo mais valioso não é dinheiro, é tempo. Quando perguntamos às pessoas no fim da vida o que elas acharam da vida, quase ninguém diz: ‘Eu queria ter trabalhado mais’. Dizem: ‘Eu queria ter passado mais tempo com meus parentes e amigos, fazendo coisas que importavam para mim’.
A cuidadora australiana Bronnie Ware acompanhou centenas de pacientes terminais. E no livro que ganhou no Brasil o título “Antes de partir” registrou os cinco maiores arrependimentos da vida, que têm tudo a ver com a ideia do lema “carpe diem”.
Os 5 maiores arrependimentos
Eu gostaria de ter dado menos importância às expectativas dos outros
Eu gostaria de não ter trabalhado tanto
Eu gostaria de ter tido a coragem de expressar meus sentimentos
Eu gostaria de ter ficado em contato com meus amigos
Eu gostaria de ter me permitido ser mais feliz
Roman Krznaric — Isso gera um dilema, porque temos que trabalhar cada vez mais para nos sustentarmos quando temos uma situação econômica difícil, e hoje vivemos numa sociedade em que nossas expectativas em relação à vida aumentaram cada vez mais. Então a questão é: como fazer nosso trabalho ser significativo? E isso é muito difícil, porque, se você trabalha como caixa de supermercado, é difícil tornar esse trabalho interessante, mas acho que um conceito-chave é o que os psicólogos chamam de experiência do fluxo, que é quando você está tão concentrado no que faz que entra num estado de fluxo no qual o futuro e o passado desaparecem, como um atleta jogando basquete ou escalando uma rocha. Geralmente isso acontece com tarefas difíceis e desafiadoras, não com algo tão fácil que deixe você entediado. Alguns psicólogos chamam isso de ‘experiência ótima’, entrar nesse estado de fluxo. É uma das táticas úteis para tentar tornar o trabalho mais produtivo. Não é a única forma. Mas acho que querer dinheiro e riqueza é um ideal muito antiquado. A maior descoberta das ciências sociais nos últimos trinta anos foi que, conforme a receita das nações sobe, o nível de felicidade não sobe. Sobe no início e depois se estabiliza. Precisamos de dinheiro para viver, mas não é isso que dá significado à nossa vida.
Marcelo Lins — Já que falamos em expectativas, muita gente discute hoje o futuro do trabalho: o que vai ser do trabalho, quais serão as profissões que permanecerão e quais serão substituídas por máquinas e tal. O que você acha que nos diferencia da inteligência artificial, dos computadores, das máquinas que nos ajudará a saber como trabalhar num futuro que já está aí?
Roman Krznaric — Acho que um dos motivos pelos quais o conceito de empatia ganhou tanta importância — e ele continuará ganhando importância — tem ligação direta com a sua pergunta, porque conforme as máquinas, os computadores e a inteligência artificial passam a realizar cada vez mais tarefas, o que sobra para os seres humanos? Relacionamentos. É nisso que somos bons. Então as empresas modernas estão investindo não em tecnologia, mas em empatia, em contratar pessoas capazes de trabalhar com pessoas de outras culturas, de se conectar aos clientes, de se colocar no lugar dos colegas. Então acho que essa é a singularidade dos seres humanos: a capacidade de se relacionar.
Marcelo Lins — Uma última pergunta: neste mundo de desconfiança, neste mundo no qual a democracia enfrenta tantos desafios, assim como os direitos sociais, os direitos das minorias, e também o meio ambiente, as pessoas têm muita dificuldade de confiar em qualquer coisa, o que você poderia nos dizer para talvez alimentar nossa esperança num futuro melhor, numa humanidade melhor? O que alimenta sua esperança?
Roman Krznaric — Eu acredito ser possível mudar o mundo com uma conversa por vez. Se conversarmos com pessoas com as quais não concordamos, se conversarmos com pessoas diferentes de nós, dessa forma criamos uma cultura de tolerância e de direitos. Foi assim na história da humanidade pelo menos nos últimos 400 anos. No século 18, os movimentos contra a escravidão e o tráfico de escravos na Europa começaram quando as pessoas passaram a conhecer ex-escravos, a ouvir relatos de ex-escravos. Isso na Inglaterra. Aos poucos, surgiram movimentos políticos e sociais e leis e instituições foram criadas para acabar com a escravidão. Acho que a luta por direitos, seja das mulheres, de povos indígenas, de pessoas de diferentes orientações sexuais, sempre exigiu conversas que se baseiem em empatia para que se inicie a jornada, às vezes longa, em direção à igualdade, tolerância e direitos.
Revista Consultor Jurídico, 3 de março de 2019, 10h45