LIBERDADE DE EXPRESSÃO
“Não importa existir liberdade de imprensa se a sociedade não confia nos jornais”
19 de agosto de 2018, 7h31
Em 1962, o jornal norte-americano The New York Times foi condenado a indenizar o comissário de polícia do Alabama em US$ 500 mil — uma bela fortuna para a época. O jornal havia publicado um anúncio de dez páginas comprado por um grupo de apoio a Martin Luther King Jr, e o texto criticava a polícia do Alabama, que havia prendido o ativista três vezes sem justificativa legal — o texto falava em sete prisões.
Poderia ser uma história singela sobre um processo judicial de outro país. Mas foi a última vez que o New York Times sofreu uma derrota num processo por difamação. Dois anos depois, a Suprema Corte dos Estados Unidos reformou a decisão e estabeleceu um parâmetro importante para a imprensa do país: em ações contra a imprensa, políticos e pessoas públicas é que devem provar que o jornal agiu com a intensão deliberada de provocar danos.
A decisão desencorajou quem desejasse usar processos judiciais como forma de intimidação, ou para ganhar dinheiro, conta David McCraw, vice-presidente jurídico do New York Times. Na época, segundo reportagem da revista Washington Lawyer, havia cerca de US$ 300 milhões em discussão em processos por difamação contra jornais. Hoje, a legislação do país está inteiramente estruturada em torno da Primeira Emenda à Constituição, que proíbe qualquer restrição à liberdade de expressão e à liberdade de imprensa, comenta o advogado, em entrevista exclusiva à ConJur.
Os resultados são vistos até hoje: entre 2010 e 2017, o jornal respondeu a 11 processos por difamação — nos EUA não existem crimes contra a honra e todos os casos ligados à liberdade de expressão são enquadrados em calúnia ou difamação, sempre cíveis. São dados de um país que considera a liberdade de expressão um valor moral, e não mais um direito constitucional.
“Passamos às vezes um ano ou um ano e meio sem sermos processados por difamação”, diz McCraw. Segundo pesquisa do Conselho Nacional de Justiça, em 2016, os veículos de comunicação brasileiros respondiam a 2,4 mil processos — só a ConJur, que acaba de completar 21 anos, tinha 31, quase o triplo do Times, jornal fundado em 1851.
McCraw explica que, ao contrário do que acontece na maioria dos países da Europa (e no Brasil), nos EUA os direitos de personalidade não são constitucionais. Portanto, o juiz não deve fazer nenhum tipo de valoração entre a liberdade de expressão e a privacidade ou “boa fama”, como diz o Código Civil brasileiro.
Por isso não estão entre as preocupações do advogado do maior jornal do mundo mudanças legislativas que restrinjam o trabalho do Times. “A maior ameaça é o ataque à credibilidade e a tentativa de encorajar cidadãos a não prestar atenção à imprensa e a acreditar apenas no governo ou apenas num grupo de pessoas. Isso me preocupa e, de certa forma, é a mesma coisa que mudar a lei”, afirma.
David McCraw passou a semana no Brasil, a convite do Instituto UniCeub de Cidadania, de Brasília. Esteve em São Paulo a convite da FGV Direito SP para falar sobre fake news, liberdade de imprensa e democracia. Além de advogado, McCraw é professor da Universidade de Nova York (NYU).
Leia a entrevista:
ConJur — Como se defende o maior jornal do mundo?
David McCraw — A lei nos EUA está de tal forma do lado das publicações que difamação não é uma preocupação como em outros lugares. Temos poucos casos de difamação. E, com o tempo, temos tido menos. Tivemos um pequeno aumento, mas, na maior parte, difamação não é comum nos EUA. Muito do que eu faço é focado no acesso à informação e a ajudar jornalistas a conseguir informações. Seja fazendo lobby com uma agência, seja ajuizando processos sob a Lei da Liberdade de Informação [Freedom of Information Act – Foia, em inglês]. Da mesma forma, estou profundamente envolvido com a nossa segurança internacional, garantindo que nossos jornalistas estejam seguros em zonas de conflito. Há outras coisas que surgem às vezes, como questões de direitos autorais, mas muito do que eu faço é trabalhar com nossos jornalistas, garantindo que eles terão acesso à informação e tentando evitar qualquer possível ação judicial que possa decorrer disso.
ConJur — Então não há muito de trabalho de defesa.
David McCraw — Eu faria a distinção entre “formal” e “informalmente”. Obviamente, passamos muito tempo falando de como uma reclamação informal não acabe se tornando uma ação por difamação ou um processo judicial. Isso é uma parte importante. Também passamos muito tempo antes da publicação falando com advogados, preocupados com o que a reportagem dirá. Esse tipo de defesa acontece o tempo todo. Litígio formal, nem tanto. Todo o resto é a parte maior do que fazemos.
ConJur — Os jornais sofrem com essas reclamações informais de difamação?
David McCraw — Não. A lei mudou de uma forma tão radical que difamação não é uma preocupação tão grande quanto era antigamente. Passamos às vezes um ano ou um ano e meio sem sermos processados. O New York Times não perde uma ação de difamação há, pelo menos, 60 anos. E o jornal não faz acordos financeiros. Se alguém nos processa e quer uma retratação ou correção, nós fazemos.
ConJur — Por que não?
David McCraw — Muitas vezes, advogados com um caso fraco abrem processos só para ver se conseguem alguma coisa num acordo. Mas acreditamos que afastamos esse tipo de ação com essa postura de não fazer acordos. Pesquisamos de onde veio essa política e descobrimos uma carta de 1922 em que um editor escreveu para um advogado que tinha feito um acordo num caso para dizer “não faça isso de novo!”. Isso é muito debatido internamente. Houve um caso em que gastamos US$ 700 mil para a defesa, e a outra parte disse que aceitaria US$ 25 mil num acordo. Mas consideramos importante continuar com o processo porque era importante marcar nossa posição, criar um limite e defender nosso jornalismo.
ConJur — A quantas ações o jornal responde?
David McCraw — Contamos recentemente: entre 2010 e 2017, respondemos a 11 ações por difamação. Em oito anos, 11 ações.
ConJur — No mundo inteiro?
David McCraw — Houve uma época, uns dez anos atrás, em que chegamos a responder a sete ou oito ações internacionais por difamação, na China, na Alemanha, na Indonésia, entre outros. Chegamos a nos preocupar com ter que lidar com processos internacionais, já que a lei é tão diferente em outros países e tão favorável aos requerentes. Mas isso nunca aconteceu, a tendência não continuou.
ConJur — Tem explicação?
David McCraw — Em parte porque o Congresso aprovou uma lei, em 2011 ou 2012, que impede alguém que tenha ganhado uma ação fora dos EUA de executar a decisão. Então a pessoa não pode ir aos EUA retirar o dinheiro, fazer a cobrança. Uso muito isso em palestras: a lei foi aprovada por unanimidade, por todos os democratas e todos os republicanos, para proteger a imprensa e a indústria. Então é irônico que tenhamos chegado aonde chegamos, com a imprensa alvo de tantas críticas.
ConJur — O que motivou essa lei? Havia muitas ações contra jornais?
David McCraw — O que acontecia era que pessoas acusadas de financiar o terrorismo, de serem oligarcas russos, enfim, estavam indo para Londres, processando jornais americanos e ganhando casos importantes. E o Congresso ficou convencido de que essa era uma maneira que aqueles que financiavam terrorismo e crime internacional tinham encontrado para silenciar o jornalismo americano. E passaram essa lei. Ela diz que, se um autor ganhar numa jurisdição estrangeira, a decisão só pode ser executada nos EUA se o país do autor tiver os mesmos padrões de liberdade de expressão e de imprensa que os Estados Unidos. Os ingleses se ofenderam bastante, porque a mensagem foi que seu sistema judicial não estava à altura do nosso. Mas desde então o sistema deles foi reformado para garantir mais proteção aos jornais.
ConJur — E de que forma as leis nos EUA ficaram mais favoráveis à imprensa?
David McCraw — Se uma figura pública, uma celebridade, uma autoridade eleita, um astro, qualquer pessoa proeminente quiser ganhar uma ação de difamação nos Estados Unidos, ela tem que provar que a história é falsa e que houve malícia, ou intenção deliberada de causar prejuízos ao autor, por parte do editor, e deve provar o chamado “imprudente descaso com a verdade”. Ambos os conceitos são importantes, porque estabelecem que o ônus da prova não é do jornal. Diferentemente do que acontece em muitos países, o jornal não tem de provar que a história é verdadeira — o autor é que tem de provar que a história é falsa. E mesmo que ele consiga, o jornal tem a defesa de alegar que o editor acreditou que a história fosse verdadeira. E se ele acreditou, não importa que a notícia estivesse errada. Tudo isso torna muito difícil que os jornais percam. E a legislação sobre o assunto é assim há mais de 50 anos.
ConJur — Isso vale para “pessoas normais” também?
David McCraw — Há outras proteções estabelecidas. Indivíduos privados têm um ônus menor, é mais fácil para eles. Quando estamos revendo uma história antes da publicação, focamos nos personagens menores da história, os personagens incidentais da reportagem, porque eles tendem a ser os que processam, e o ônus deles é menor.
ConJur — A reputação do jornal pesa nessas horas?
David McCraw — Quero fazer uma distinção entre os padrões que estabelecemos internamente para nós mesmos e as defesas que nós faríamos se fôssemos processados.
Internamente, não nos importamos com o padrão jurídico, queremos é estar certos. Não olhamos para uma história e pensamos “isso realmente parece errado, mas acreditamos que está certo, então vamos publicar”. Queremos ter certeza de que estamos certos. Então somos muito cuidadosos com reputações e com a nossa reputação, tendo certeza de que vamos reportar o que aconteceu e, se cometermos um erro, vamos corrigi-los. Esse é o padrão ético que nós estabelecemos como jornal.
Se algo der errado e formos processados, vamos argumentar o padrão legal de que acreditamos que a história fosse verdadeira. Quando é sobre uma figura pública, esta é a nossa responsabilidade: demonstrar que acreditávamos que a história era de fato verdadeira. E isso milita a nosso favor, porque se eu, como advogado, ponho pressão num jornalista para confirmar fatos, voltar e fazer outra entrevista, isso é evidência de que nos importamos com a verdade. Mesmo se errarmos, nosso comportamento mostra que agimos de boa-fé, que realmente acreditamos que aquilo fosse verdade.
ConJur — Complicada a defesa de quem está do outro lado, não? Quando o New York Times comete um erro, ele se torna verdade.
David McCraw — Isso era uma preocupação maior antes da internet, e acredito que a internet seja parte da razão pela qual o número de ações por difamação caiu. Outra parte tem sido a lei, claro. Mas creio que as pessoas sentem que, se elas foram injustiçadas por uma reportagem, se as suas reputações forem maculadas, a história for falsa, elas podem levar sua própria versão dos fatos a público, pela internet. A voz do New York Times não é mais tão única e potente quanto era. Costumava ser assim mesmo, se o Times dissesse algo, não havia voz que competisse, ou as vozes competindo eram menores. Agora há todas essas vozes competindo por aí. E vejo isso como uma das razões para o sucesso de Donald Trump.
ConJur — Como assim?
David McCraw — Se ele não gosta da nossa reportagem, ele não precisa nos processar ou pedir uma correção. Ele vai para o Twitter e dá a versão dele. Pode não ser uma versão verdadeira, mas ele não sente que precisa nos processar ou exigir uma correção. Aliás, essa é uma terceira coisa importante: é tão mais fácil hoje consertar uma história! Se algo sai errado de manhã, à tarde já está corrigido na versão on-line. Antes, se algo saísse errado, uma pessoa que comprasse o jornal leria aquela informação errada para sempre. É quase impensável que qualquer pessoa que lesse o jornal descobrisse que publicamos uma correção em outra edição uma semana depois, quando o erro fosse descoberto. Agora eles podem ver que corrigimos a história, o que é uma evolução muito positiva.
ConJur — Como o jornal lida com o erro?
David McCraw — Outra coisa que fizemos para sermos responsáveis foi criar centros on-line para os leitores. Esses centros permitem que pessoas escrevam para o jornal e tenham editores explicando por que fizeram algo, ou por que acharam que algo era justo. Isso abriu a instituição e foi importante. As pessoas podem ver que nos importamos com a verdade, podem entender melhor como fazemos as coisas. Muitas vezes as histórias são sobre como fazemos a cobertura e como o jornalismo funciona. Outras vezes alguém diz “essa história parece injusta”, ou alguém dirá “aquela ilustração parece tendenciosa”, e os editores dão retorno direto para os leitores. Isso ajuda. Também fizemos algo extraordinário no ano passado: abrimos a redação do jornal para a filmagem de um documentário, em quatro partes, para o canal Showtime. Mais uma vez, isso ajuda as pessoas a ver como repórteres trabalham. Alguns dizem que o programa só mostrou um monte de gente datilografando, mas enfim.
ConJur — Essa proteção à imprensa funciona da mesma forma em casos que envolvem segurança nacional?
David McCraw — Esses casos são interessantes. A Lei de Espionagem está em vigor há 101 anos e em 101 anos nenhuma publicação foi processada com base nela. É uma lei claramente feita para pessoas como Edward Snowden, que era um consultor do governo. Claramente se aplica a servidores públicos. Nunca houve litígio sobre se essa lei se aplica a jornais que divulgam essas informações. Está na letra da lei “divulgação sem autorização”, mas nós alegaríamos que a Primeira Emenda protege nosso direito de publicação. O governo tem vastos poderes de proteger segredos, mas, quando eles vazam, a imprensa tem vastos poderes de publicar segredos. Obviamente levamos muito a sério quando recebemos informações confidenciais — nosso protocolo normal é sempre perguntar ao governo sobre questões confidenciais que vamos publicar. Não damos poder de veto, mas procuramos saber quais seriam as preocupações deles, porque é difícil saber quais danos a divulgação desse tipo de informação pode causar. O presidente Trump tem tuitado bastante sobre como é ruim a divulgação dessas notícias, mas eu acho que isso torna o país mais forte, cria uma janela para uma parte muito importante da nossa política.
ConJur — Pelo que se divulga sobre essas reportagens, a pressão do governo sobre o jornal costuma ser bastante pesada. Quando o Times revelou que a NSA estava usando suas ferramentas para espionar americanos dentro dos EUA, por exemplo, o governo alegou que, se a reportagem fosse publicada, um dos principais programas de combate ao terrorismo doméstico acabaria. Como uma entidade privada como um jornal pode tomar uma decisão desse tamanho?
David McCraw — Um jornal nunca tem informações suficientes. Nunca sabemos o futuro e o que acontecerá quando publicarmos as nossas informações. Mas parte do processo é tentar entender se, na nossa visão, um programa é ilegal e se é algo que o público deveria saber, porque o governo está tomando decisões políticas que são muito importantes. Os repórteres recebem muito feedback de suas fontes dentro do governo, o que nos ajuda a tomar essas decisões difíceis.
Cobrindo a primeira história sobre a vigilância da NSA, em 2004 e 2005, uma das coisas que convenceu os editores é que sabíamos que pessoas no Departamento de Justiça achavam que o programa era ilegal. Isso, para nós, sugeria que, se no governo havia perguntas e preocupação sobre a base legal do programa, isso era algo que as pessoas deveriam saber.
Isso se aplica à divulgação dos documentos de Snowden. Não fomos os primeiros, o Washington Post e o Guardian publicaram a primeira leva, nós estávamos na segunda. Mas o interessante foi que o ex-presidente Obama, no final de seu mandato, disse que, primeiro, Snowden deveria voltar e ser julgado (isso não me surpreendeu) e, depois, que a divulgação deveria começar um debate sobre quanta publicidade queremos e quanta segurança queremos. E ele disse que há poucos países no mundo onde esse debate é possível, onde essa informação poderia ter sido divulgada, o que demonstra a força do país. Esse discurso foi muito importante.
ConJur — Existe proteção para o sigilo da fonte?
David McCraw — A área de fontes confidenciais é muito difícil. A lei do Estados Unidos é desfavorável à imprensa e pouco clara. Na maioria dos estados, há proteção na lei para manter uma fonte secreta. Se alguém fala com um de nossos repórteres e diz “eu não quero ser identificado”, podemos garantir esse direito num tribunal estadual, e no estado de Nova York isso é um direito absoluto: se alguém, um investigador ou parte num litígio, quer saber quem foi nossa fonte, podemos dizer que a lei nos protege e não sou obrigado a dizer. E isso funciona.
ConJur — Na Justiça Federal não é assim?
David McCraw — Nos tribunais federais, esse não é o caso. Há divergências entre as cortes sobre se há ou não proteção. Num caso famoso, um ex-repórter do New York Times chamado Jim Risen recebeu a ordem de revelar suas fontes. Ele cobriu uma história sobre um programa da CIA que deu errado, e o governo estava processando um agente da CIA dizendo que ele havia vazado a informação. Jim Risen se recusou a dar o nome da sua fonte. O caso durou anos e finalmente uma corte de apelação decidiu que não existe direito de um repórter preservar o segredo da identidade de uma fonte num caso criminal, uma decisão muito controversa e da qual discordamos. Interessante foi que, ainda assim, Jim Risen se recusou a dar o nome da sua fonte e finalmente os promotores simplesmente desistiram.
ConJur — O que aconteceu?
David McCraw — O governo processou o agente da CIA e ganhou, provando o nosso argumento inicial de que eles não precisavam que Jim revelasse a identidade da sua fonte. Mas a lei é incerta. É difícil para os repórteres, porque eles têm que prometer confidencialidade. Se um repórter do New York Times está fazendo uma reportagem e diz para uma fonte “eu protejo sua identidade” e, depois da publicação, há um litígio estadual, o repórter jamais terá que revelar sua fonte. Mas se o litígio for na esfera federal, aí ninguém sabe. Ninguém pode prever na hora qual jurisdição estará envolvida. Mas repórteres nos EUA algumas vezes preferem ir para a cadeia a revelar suas fontes.
ConJur — O que acha do Patriot Act [lei que dispensa autorização judicial para interceptações de comunicações em investigações por terrorismo]?
David McCraw — Com o Patriot Act e outros que o seguiram, nossa principal preocupação como uma organização de notícias é o direito do governo de conseguir de forma secreta informações sobre pessoas através de provedores de internet ou serviços telefônicos. Há mecanismos na lei que permitem ao governo, durante uma investigação de segurança nacional, ir ao Google ou à Microsoft ou empresas de telefonia e conseguir essas informações. Isso nos preocupa, claro. Achamos, embora seja difícil ter certeza, que esse poder não foi usado muito frequentemente, mas, quando ficamos sabendo de casos, isso nos preocupa muito. Houve alguns casos durante a administração Obama, quando e-mails e ligações telefônicas de repórteres (um repórter da Fox News e um grupo de repórteres da Associated Press) foram obtidas de forma sigilosa. Como resultado disso, fomos ao Departamento de Justiça e pedimos a eles que reforçassem suas regras internas sobre quando o governo pode fazer coisas assim para pegar informações de jornalistas. E isso foi um sucesso, eles reforçaram as regras.
As regras internas são meio complicadas, mas essencialmente elas dizem que agentes governamentais investigando crimes podem pegar informações sobre jornalistas como último recurso. Os agentes ou promotores têm que provar ao procurador-geral que não há nenhuma outra forma de conseguir essa informação. E as regras funcionam. Obviamente, às vezes elas falham, como vimos em alguns casos. Mas, em geral, elas são uma restrição importante contra a ação governamental. A razão que sabemos que elas funcionam é que a administração Trump quer mudá-las para tornar mais fácil.
ConJur — A administração Trump mudou o relacionamento do jornal com o governo?
David McCraw — Não posso falar pelos jornalistas, não sei se ficou mais fácil ou mais difícil. Minha visão, após conversas com jornalistas, é que há uma quantidade inacreditável de vazamentos de dentro da Casa Branca. Há facções em competição e trocas em cargos. De certa forma, nunca houve tanto acesso a um presidente. Mas, do ponto de vista legal, sinto que há mais tensão nas nossas negociações com o DoJ [Departamento de Justiça americano]. Nos bastidores, advogados de organizações jornalísticas conseguiam fazer reclamações para o DoJ, mas há menos disso agora, há mais suspeita de ambas as partes. No geral, as críticas e ataques repetidos pelo presidente contra a mídia criam uma atmosfera na qual pessoas estão duvidando dos jornalistas, e isso é uma pena.
ConJur — O senhor considera que a liberdade de imprensa está ameaçada nos EUA?
David McCraw — Não estou preocupado com mudanças de regras ou de leis. A Primeira Emenda está bem estabelecida e seria difícil mudar. A maior ameaça é o ataque à credibilidade e a tentativa de encorajar cidadãos a não prestar atenção à imprensa e a acreditar apenas no governo ou apenas num grupo de pessoas. Isso me preocupa e, de certa forma, é a mesma coisa que mudar a lei. Não importa quanta liberdade a imprensa possua numa sociedade se a imprensa não tem credibilidade. Se não há credibilidade, a imprensa não consegue movimentar o público e, em última instância, esse é o maior poder da imprensa. Eu me preocupo com a violência dirigida contra jornalistas. Em comícios do Trump, pessoas são encorajadas a gritar contra a imprensa e antagonizar repórteres. Só é necessária uma pessoa para criar uma ameaça, e essa atmosfera de ameaça e violência é muito perigosa.
ConJur — O Judiciário brasileiro reconhece a existência de um “direito ao esquecimento”, que não está previsto em nenhuma lei. E a imprensa tem sofrido com isso, inclusive judicialmente. Como o direito ao esquecimento funciona nos EUA?
David McCraw — O direito ao esquecimento claramente viola a Primeira Emenda, então toda decisão que tocou nisso foi a favor da imprensa, dizendo que temos o direito de manter nosso arquivo de histórias. Seria muito difícil o direito ao esquecimento se tornar lei nos EUA. O que vemos nos EUA não são leis de esquecimento como vemos na Europa, mas leis que são mais duras quanto a garantir que agentes do governo mantenham segredos. Selar históricos criminais, por exemplo. No estado de Nova York, por exemplo, há constantemente projetos de lei para selar registros criminais em casos de menor gravidade após cinco anos, de forma que eles ficariam indisponíveis. Se o jornal escreve sobre alguém cometendo um crime ou sendo condenado por um crime, nós não temos que tirar a matéria do ar. Se alguém vazar a informação, podemos publicar. Mas há um esforço para que o governo seja mais discreto com informações pessoais. Na Europa, o Google remove nossas histórias de pesquisas quando pessoas lá fazem a requisição. Mas, do nosso lado, as histórias ainda estão no nytimes.com, ainda estarão disponíveis. Então eu não vejo isso vindo para os EUA.
Pedro Canário é chefe de redação da revista Consultor Jurídico.
Carlos de Azevedo Senna é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 19 de agosto de 2018, 7h31