Juiz deve decidir e não escolher

SENSO INCOMUM

2 em 1: A proibição do silêncio do réu e a proibição de superar precedentes

23 de novembro de 2017, 8h00

Por Lenio Luiz Streck

Esta coluna pode ser lida ao som de The Sound of Silence (“Hello, darkness, my old friend…”). Sim, desde Simon & Garfunkel o som do silêncio não era capaz de dizer tanta coisa.

[Para ajudar na trilha sonora, coloquei, no fim do texto, duas versões da música — a original e uma moderninha. Pode deixar tocando enquanto lê.]

1 – O direito ao silêncio e a presunção da inocência

Lembro de manuais ou compêndios de dogmática penal que traziam – não se ainda o fazem – pequenos verbetes prêt-à-porters dizendo coisas como “álibi não provado, réu culpado” (veja-se a denúncia de Aury Lopes Jr e Alexandre Morais da Rosa aqui). No júri isso era (ou é ainda) utilizado com frequência (nos tribunais ainda hoje: veja-se aqui). Na verdade, essa é a versão 2.0 da inversão do ônus da prova, ainda praticada nos tribunais da República, conforme já denunciei várias vezes. Leiam, sobre isso, minha coluna “Na ânsia de condenar, MPF usa inversão do ônus da prova” (aqui). Recomendo também este texto que escrevi faz algum tempo: “A presunção da inocência e a impossibilidade de inversão do ônus da prova em matéria criminal: os Tribunais Estaduais contra o STF” (aqui). Também ver meu texto sobre o caso dos devoradores de ovelhas (aqui).

Por que estou falando disso? Porque esse fantasma ronda a dogmática penal ainda nestes dias, mormente em tempos de manifestos contra a bandidolatria (aquiminha contundente crítica). Com efeito, recentemente uma juíza de São Paulo sentenciou (nos dois sentidos da palavra) que o silêncio perante a autoridade policial é uma “conduta incompatível com aquele que brada por sua inocência” – afinal, a “reação normal” que se espera de alguém que nada fez é declarar-se inocente (veja decisão). Disso se segue que o acusado que permanecer em silêncio em uma abordagem está, automaticamente, assumindo sua culpa. Engana-se, pois, quem pensou que essa é a sinopse de uma obra de Franz Kafka ou de George Orwell…

Pior: Na tentativa de fundamentar seu raciocínio, a juíza recorre ao extinto Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, segundo o qual “embora a opção pelo silêncio derive de previsão constitucional, ela não inviabiliza convencimento judicial no sentido desfavorável aos réus”. Repitam comigo: Embora derive da Constituição… Embora…!

Vejam, pois, a negação fetichista na tese do Tribunal: em outras palavras, o que foi dito é algo mais ou menos como “bem, nós sabemos que a Constituição garante o direito ao silêncio, mas…”. Je sais bien, mais quand même ­— eu sei bem, mas mesmo assim… E tudo que vem antes do mas – como diz o grande “filósofo contemporâneo” Ben Stark, de Game of Thrones – bem… tudo que vem antes do mas não importa. Basta fazer o teste para verificar. Algo como “fulano é um bom cara, mas é burro”. Tire o que vem antes do “mas” e veja o que resta… Faça este teste nas vezes em que o relator no tribunal diz, durante minutos, que a doutrina x e o artigo número tal do CPC dizem tal coisa, “mas neste caso não aplicarei nada disto”. Bingo.

A juíza segue dizendo: “Quem cala não confessa, mas também não nega”. A frase é atribuída a Paulo, jurisconsulto do Império Romano. A referência é, devo dizer, muito apropriada. Ao que parece, voltamos à Antiguidade.

Vejam: é duro ter de repetir algo tão óbvio, tão claro, mas o fato é que entre as garantias previstas pelo inciso LXIII do art. 5º da Constituição Federal está o de “permanecer calado”. É muito simples. Tanto que é com pesar que escrevo essa coluna, uma vez que decisões assim, tão flagrantemente inconstitucionais, parecem muito mais o pano de fundo de uma ficção distópica que o cenário de nossa prática jurídica.

Eu não peço que a juíza goste de quem fica em silêncio. O ponto é que isso simplesmente não importa. Se um juiz acha (ou deixa de achar) que a “reação normal” de um inocente seja assim declarar-se, e mais, se pensa que isso tem lugar no julgamento de qualquer que seja a questão, esse juiz estará escolhendo, e não decidindo. E isso importa, muito, na medida em que, se aceitamos que o juiz simplesmente escolha, não servimos para nada. A Constituição não tem qualquer valor, estamos todos à mercê do que o julgador acha… Triste isso.

Não é de agora (ver aqui) que venho dizendo que escolher o Direito é, ao mesmo tempo, escolher abrir mão de portar-se como torcedor. É óbvio que juiz tem opinião, subjetividade. Nunca neguei isso (muito pelo contrário, inclusive). O ponto é que é justamente por isso que é o Direito que nos salva de nós mesmos.

2 – O direito ao silêncio, o baseball, as empirias (ou behaviorismos) e quejandos

Na linha do que escrevi na semana passada, faço duas perguntas àqueles que não resistem ao fascínio pela empiria (está na moda, agora, fazer empiria[1] no Direito – como diz a professora norte-americana, melhor do que estudar leis e doutrina é compreender o comportamento real [sic] dos juízes): como vamos preverdecisões desse tipo? E ainda que sejamos capazes disso, de que adianta esse tipo de previsão? Alguns dirão que, “veja, é útil, porque agora o acusado sabe que não pode mais ficar quieto”. Bingo. Esse é o tipo de absurdo ao qual chegamos. O causídico tem de ficar esperto. Portanto, prepare-se para o pior. Por exemplo, se uma pesquisa empírica mostrasse que determinado juiz(a) inverte o ônus da prova ou ignora o direito ao silêncio, provavelmente a solução “empirista” apontaria/á para a seguinte solução (ou algo do gênero): em vez de brandir a Constituição, o causídico deve se adaptar e mandar o seu cliente (réu) gritar que é inocente… Mais ou menos como aquela pesquisa dos juízes de Israel, que já comentei… (vejam a coluna). Se os juízes são mais duros com os acusados quando estão com fome (perto do meio dia), algum empirista provavelmente dirá que “a-saída-é-tentar-colocar-seus-processos-para-serem-julgados-logo-depois-do-café-da-manhã…”. Já de minha parte, afirmo que esse tipo de pesquisa apenas mostra o fracasso do Direito. E que, em sendo verdade, deve ser dado um lanche ao juiz no meio da manhã (estou sendo irônico). Como sou um jurássico, prefiro o caminho do Direito, usando a doutrina e a Constituição. Bom, alguém dirá que “cada louco com sua mania”. Peço desculpas, inclusive, por falar nessa coisa serôdia que é…o Direito. O que é isto – o Direito?

Post scriptum 1.O crime de porte ilegal da fala

Peço desculpas por insistir na defesa da Constituição e do papel da doutrina. É que, sem trocadilho, não tenho o direito de ficar em silêncio diante dessas coisas. Primeiro porque, como jurista, tenho a responsabilidade de cumprir o papel que minha escolha pelo Direito exige que eu exerça. Mas ao que parece, para além disso, vivemos em tempos em que o silêncio sequer é permitido.Tempos duros. Do jeito em que vamos, em breve quem manejar doutrina e procurar levar o Direito a sério correrá o risco de ser processado por “obstrução da Justiça”. Ou pelo crime de porte ilegal da fala.De minha parte, só falo na presença de meu advogado. E quero direito ao meu silêncio.

Post scriptum 2: O que estão fazendo com o Direito? O realismo retrô triunfou

Registro meu apoio ao artigo que Dierle Nunes e Marina Carvalho publicaram na ConJur dia 22 de novembro 2017 (aqui). Direito é o que o Judiciário diz que é? Para quem gosta das teses realistas (e o Brasil está repleto de realistas retrô – vejam aqui artigo meu e de Flávio Quinaud), a decisão criticada por Dierle é um prato cheio. Corremos o risco de o STJ criar um sistema fechado, tipo “não serão passíveis de revisão os ‘precedentes´ do próprio STJ, logo, também as decisões serão imutáveis”. Às favas o artigo 927, do CPC. E também o 926. Ou seja, a decisão no AREsp 1.170.332/SPdecretou a impossibilidade de se manejar qualquer forma de superação de “precedentes” e acesso aos tribunais superiores. Algo como constava no artigo 11 do AI 5: são insuscetíveis de apreciação pelos Judiciário os atos decorrentes deste ato. Bingo. É nisso que deu a paixão pela importação de coisas do common law, mas-que-lá-nem-são-assim. Parafraseando o preclaro Conselheiro Acácio, eu avisei que as consequências viriam depois.

 

[1] Pesquisas sempre são necessárias. Entretanto, há que se tomar cuidado, para não “jogar” com estatísticas ou tirar conclusões como a pesquisa dos juízes de Israel ou das filhas dos juízes norte-americanos. E também não se deve achar que direito é como baseball e que basta entender o “comportamento” dos jogadores…!

Lenio Luiz Streck é doutor em Direito (UFSC), pós-doutor em Direito (FDUL), professor titular da Unisinos e Unesa, membro catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional, ex-procurador de Justiça do Rio Grande do Sul e advogado.

Revista Consultor Jurídico, 23 de novembro de 2017, 8h00

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