DIÁRIO DE CLASSE
Um dicionário que não descreve, mas discute e problematiza o Direito
19 de agosto de 2017, 8h00
O Dicionário de Hermenêutica: quarenta temas fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito, de Lenio Streck, recentemente lançado pela editora Casa do Direito, como o próprio autor explica nas “Notas Introdutórias”, não é mais “um glossário ou dicionário stricto sensu contendo conceitos descritivos”. Até porque, mesmo que o fosse, hermeneuticamente, uma pretensão descritiva, “já é, em si, uma prescrição”, um posicionar-se no mundo. Ao romper explicitamente com aquilo que o senso comum considera um dicionário, a obra é, antes de tudo, resultado de um projeto de pelo menos três anos de pesquisa, pensado por seu autor no sentido de uma “pequena história acerca dos temas principais da hermenêutica e da teoria do direito”.
Lenio Streck, assim, selecionou e tratou, em quarenta verbetes, os “principais materiais” que conformam a sua proposta de Crítica Hermenêutica do Direito: “tese, postura ou teoria” por ele desenvolvida ao longo de mais de vinte anos como professor e pesquisador. A Crítica Hermenêutica do Direito, como ele mesmo afirma, é uma “cadeira que se assenta entre os dois grandes paradigmas filosóficos: o objetivismo e o subjetivismo”, cuja tarefa consiste em “estabelecer as condições para a construção de uma teoria da decisão, fechando, assim, um gap existente na teoria e na prática cotidianas dos juristas”.
Nesse projeto inédito, o verbete “Positivismo Jurídico” (nº 29) merece destaque especial. Em mais de 50 páginas, Lenio Streck enfrenta aquela vertente da Teoria do Direito que, certa vez, Dworkin havia chamado, criticamente, de “a teoria dominante do direito”. Iniciando pelo positivismo jurídico anterior a Kelsen e a Hart, o verbete perpassa, depois, a obra desses dois grandes autores, para, então, apresentar uma compreensão crítica sobre os chamados positivismos contemporâneos, “pós-hartianos”: os positivismos “exclusivo”, “inclusivo” e “normativo”, que se fazem presentes, especialmente, na tradição anglo-americana, a fim de analisar suas propostas, bem como explicitar seus persistentes limites, sobretudo, no que se refere à ausência de uma teoria da decisão. Fica claro, mais uma vez, como todos os positivismos acabam caindo no velho problema de se conceber a “aplicação jurídica” no quadro de uma teoria da discricionariedade que, em última análise, pretende se situar aquém de toda pretensão normativa de justificação da correção das decisões jurídicas. Com certeza, temos nesse verbete um dos maiores e mais completos textos sobre o positivismo jurídico já escritos no Brasil e quiçá, no exterior, uma vez que ele, não apenas se baseia em uma revisão bibliográfica extensa e profunda, mas porque enfrenta, com maestria, um a um, os pontos fortes e fracos das diversas formas de positivismo jurídico. O que, inclusive, leva, em seguida, aos contrapontos teóricos apresentados no verbete “Pós-positivismo”.
Todavia, não apenas os positivismos pós-hartianos receberam atenção especial. O primeiro verbete do Dicionário, denominado “A pureza do direito kelseniana”, mostra como é complexa a proposta de uma Teoria Pura do Direito, em Kelsen. Adentrando as influências neokantianas e do neopositivismo lógico, Lenio Streck considera como Kelsen buscou situar a ciência do Direito — e a pureza dessa ciência — em uma linguagem de segundo nível, supostamente livre das insuficiências da linguagem natural. Assim, em contraponto àqueles que ainda afirmam que Kelsen foi o jurista que prescreveu aos juízes que estes deveriam seguir a letra fria da lei, separando o Direito da moral, Lenio Streck é implacável ao demonstrar que essa singela afirmação possui três erros crassos, a saber, que (1) Kelsen nunca prescreveu como os juízes devem julgar; (2) que juízes não estão vinculados à “letra fria da lei”, na medida em que podem decidir, inclusive, fora dos limites da moldura que a norma jurídica a ser aplicada representa em face do ato que a aplica e, por fim; (3) Kelsen não procurou separar o direito da moral, mas antes, procurou distinguir o enfoque próprio da ciência do direito.
O modo com que a teoria do direito se desenvolveu na Alemanha também faz parte das detidas considerações de Lenio Streck. Nos verbetes “Jurisprudência dos Conceitos” (nº 18), “Jurisprudência dos Interesses” (nº 19) e Jurisprudência dos Valores (nº 20), é possível de verificar como o direito alemão teria passado por fases diametralmente opostas: da rigidez do pandectismo, que pode ser comparada — guardadas as devidas proporções — com um exegetismo francês, à aposta na “atividade do juiz e os valores que deve considerar na atividade jurisdicional”. Da mesma forma, a teoria do direito desenvolvida nos EUA também recebe especial atenção no Dicionário. Além da atenção conferida à obra de importantes autores dos já mencionados positivismos contemporâneos (exclusivo, inclusivo e normativo), no contexto norte-americano, Lenio Streck oferece o verbete “Realismo Jurídico” (nº 35), concluindo que tal teoria “traduz-se numa forma acabada de positivismo fático que, ao buscar superar o formalismo-exegético, acabou por abrir caminho para discricionariedades e decisionismos”. Nesse sentido, Lenio Streck contribui, mais uma vez, para afastar as “vulgatas” que de modo corriqueiro, seja na doutrina, seja na jurisprudência, são feitas dessas teorias e autores.
E, assim, questionando o uso retórico que, por vezes, se faz das teorias jurídicas, um dos grandes méritos da obra de Lenio Streck é, justamente, trazer um texto denso e sofisticado que, ao mesmo tempo, tem uma utilidade prática incalculável. A hermenêutica refuta dualismos e, nesse sentido, busca superar a divisão teoria-prática. Tal é o caso, por exemplo, do tema tratado no verbete “Ponderação” (nº 28): vemos doutrinadores e tribunais fazendo uso da ponderação alexyana de forma equivocada, para dizer o mínimo. Assim, Lenio Streck traz, em seu Dicionário, um importante texto sobre a teoria de Alexy, criticando inclusive o modo como ela vem utilizada, seja por doutrinadores, seja por juízes, para supostamente criar uma “capa de sentido” a pontos de vista argumentativos carentes de fundamentação e a decisões tomadas de forma voluntarista.
De igual forma, vemos esse auxílio no verbete “Pamprincipiologismo” (nº 27), no verbete “Diferença entre regras e Princípios” (nº 7) e no verbete “Princípios Jurídicos” (nº 34). Sabe-se o quanto se pretende opor, diariamente, “princípios” a regras jurídicas, como se, aqui, não houvesse uma coimplicação. E, mais, o quanto a referência retórica a princípios faria deles meros “enunciados performativos para maquiar a discricionariedade do julgador”, para não dizer arbitrariedade do julgador. E, assim, também aqui que se apresenta a luta de Lenio Streck contra qualquer pretensão à discricionariedade — e disso segue-se, também, a sua luta pela democracia. Sobre o tema, cabe considerar, especialmente, os verbetes “Discricionariedade” (nº 9) e “Solipsismo” (nº 38), que, por sua vez, se interligam ao verbete “Filosofia da Consciência” (nº 12), que vem explicitar criticamente o “lugar de fala do sujeito arbitrário e discricionário”.
Ainda sobre a relevância prática da presente obra de Lenio Streck, é impossível não mencionar o fundamental verbete “Resposta adequada à Constituição (resposta correta)” (nº 36). Nesse, o autor traz aqueles que seriam, no seu modo de ver, os elementos para a verificação da correção de uma decisão judicial que, justamente, forma a teoria da decisão no marco da Crítica Hermenêutica do Direito. Aqui, tais elementos são apresentados por meio da verificação das seis hipóteses em que, segundo Lenio Streck, um juiz pode e deve deixar de aplicar uma lei; das três perguntas que devem ser feitas antes de qualquer decisão; dos cinco princípios e, por fim; do critério da condição semântica de sentido. Nesse verbete, Lenio Streck analisa criticamente decisões judiciais, procurando mostrar de que modo se aplicam os critérios que propõe em sua Crítica Hermenêutica do Direito. Trata-se, pois, de uma contribuição original para o controle das decisões judicias ou daquilo que denomina de “Constrangimento Epistemológico”, que também merece um verbete específico (nº 6).
Além disso, Lenio Streck apresenta uma série de verbetes que recuperam as bases filosóficas que conformam a matriz teórica proposta. Essas bases filosóficas conduzem a uma “antropofagia” que o autor faz da filosofia hermenêutica heideggeriana, da hermenêutica filosófica gadameriana e da concepção do direito como integridade dworkiniana. Entre os verbetes, destacam-se “Applicatio” (nº 2), “Coerência e Integridade” (nº 4), “Diferença Ontológica” (nº 8), “Esquema Sujeito-Objeto” (nº 10), “Filosofia Hermenêutica” (nº 13), “Hermenêutica Jurídica” (nº 16), “Pré-Compreensão” (nº 32), “Solipsismo” (nº 38) e “Verdade” (nº 40). O Dicionáriocontém, ainda, um verbete que presta um tributo a Warat: “Senso comum teórico dos juristas” (nº 37).
É notável o modo como todos os verbetes se interligam, de forma circular, o que reflete os compromissos teóricos assumidos pela proposta de uma Crítica Hermenêutica do Direito, construída por mais de duas décadas. E, sobre essa circularidade, precisamente, há o verbete “Círculo Hermenêutico” (nº 3). Isso confere unidade à obra, na qual um tema liga-se sempre a outro, fazendo com que este Dicionário de Hermenêutica seja, com maestria, um ponto de convergência da trajetória que Lenio Streck desenvolveu durante toda a sua carreira acadêmica.
Lenio Streck, portanto, rompe com paradigmas filosóficos ainda presentes em nossas práticas jurídicas e doutrinárias e, com isso, ultrapassa a distinção teoria e prática. Ao longo de toda obra, revela-se a proposta de uma filosofia no direito (Stein) que procura resgatar a dignidade da teoria do direito a partir do diálogo crítico com decisões de casos concretos e a partir de questões que se situam no horizonte das práticas jurídicas. De tal modo que este Dicionário de Hermenêutica é leitura indispensável. Trata-se, pois, de um texto que provoca a comunidade jurídica, convidando-a a repensar criticamente o modo como se teoriza e se pratica o direito nos dias de hoje.
Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira é professor titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da UFMG.
André Karam Trindade é doutor em Direito, professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Guanambi (FG/BA) e advogado.
Revista Consultor Jurídico, 19 de agosto de 2017, 8h00