CONTAS À VISTA
Ajuste fiscal profundo é urgente para um sustentável ciclo de prosperidade
1 de agosto de 2017, 16h57
O Tribunal de Contas da União recém emitiu no último dia 12 de julho um alerta ao Poder Executivo acerca do risco de descumprimento da meta fiscal em vigor para o exercício, de R$ 139 bilhões de déficit primário. Assinalou o TCU a grande probabilidade de que receitas extraordinárias decorrentes de novas concessões e permissões de serviços públicos não se concretizem este ano. O TCU registrou ainda um possível déficit primário de R$ 161 bilhões.
Em seguida, o governo federal promoveu uma alta das alíquotas de contribuições sociais incidentes sobre combustíveis de modo a obter receita adicional estimada até o fim do exercício de R$ 10 bilhões e contingenciou mais R$ 6 bilhões do orçamento aprovado, perfazendo com isso R$ 45 bilhões do orçamento bloqueados para execução.
Observem bem, R$ 45 bilhões bloqueados para que o governo federal, cumprindo a lei, direcione a execução orçamentária para atingir a meta estabelecida quando o orçamento foi aprovado. Isso quer dizer que, durante a execução do exercício, pelo comportamento das receitas, estimou-se que R$ 45 bilhões delas não se realizarão, daí ser necessário bloquear o mesmo montante em despesas para que a meta estabelecida possa ser atingida.
O bloqueio de despesas nesse montante tem afetado a prestação de serviços públicos relevantes e de alta visibilidade. Há pouco, a emissão de passaportes pela Polícia Federal foi suspensa. As universidades federais denunciam que vários projetos de pesquisa serão descontinuados. Na Universidade Federal do Rio de Janeiro, há leitos novos na cirurgia e na UTI que, embora recém equipados, não podem entrar em funcionamento porque o hospital universitário não recebe autorização para contratar o pessoal necessário.
Segundo informa o diretor do Hospital Clementino Fraga, Eduardo Cortes, a capacidade de realização de cirurgias do principal hospital de formação dos médicos do estado do Rio de Janeiro seria triplicada. A UFRJ já deve mais de R$ 14 milhões só em energia elétrica. Numa outra universidade, as refeições dos alunos foram reduzidas para cortar custos: não há mais suco ou sobremesa e o cardápio foi simplificado.
Estamos entrando em um quadro de colapso fiscal. Alguns estados já estão em colapso evidente, como o Rio Grande do Sul e o Rio de Janeiro. Não há dinheiro para as despesas mais básicas. Falta combustível para as viaturas policiais. A Universidade Estadual do Rio de Janeiro não retomará as aulas do segundo semestre por absoluta falta de recursos para funcionar. Servidores aposentados, mesmo os de menor renda, estão com salários em atraso desde maio. Talvez seja a primeira vez que nós brasileiros estejamos mesmo vivenciando o quão grave e dolorosa pode ser uma crise fiscal produzida por absoluta irresponsabilidade fiscal. Que não percamos a oportunidade de aprender com ela e de corrigir falhas estruturais que sempre deixamos para depois.
O governo estuda mandar um projeto de lei ao Congresso Nacional para mudar a meta estabelecida, ampliando o déficit fiscal autorizado. Se, e apenas depois de, o Congresso autorizar, poderá o governo desbloquear recursos do orçamento atualmente bloqueados.
O quadro fiscal do país é mesmo muito preocupante. A forte queda de receitas decorre da crise econômica que têm como raiz a própria crise fiscal. A conjugação de déficit primário com dívida pública elevada e crescente gera falta de confiança da sociedade em que o governo seja, ao mesmo tempo, capaz de manter seus gastos dentro de sua capacidade de arrecadação e controlar seu nível de endividamento. Isso inibe investimentos necessários para o crescimento econômico. Com medo de perder seus recursos, as pessoas optam por posições defensivas, de proteção de sua poupança e mínima exposição ao risco. Investir é o mesmo que acreditar, confiar no futuro. Onde não há confiança, não há investimento.
A arrecadação de impostos não é apenas um reflexo da atividade econômica, ela responde de maneira amplificada às variações da economia, especialmente as negativas. Uma queda de 3% no PIB pode facilmente corresponder a uma perda de receita de 10%. Quando uma empresa começa a enfrentar um ambiente de crise econômica, com perda de receitas e aperto em seu fluxo de caixa, ela primeiro procura reduzir custos, cortando capacidade ociosa. Se isso não for suficiente e ela tiver de atrasar algum pagamento, sem dúvida alguma ela prefere atrasar o pagamento de impostos e encargos sociais para poder manter um nível mínimo de atividade a não pagar um fornecedor ou um empréstimo, o que poderia levá-la a uma falência rapidamente. Mantendo-se em atividade, mesmo devendo impostos, a empresa tem a esperança de conseguir atravessar a crise econômica e, quando a economia voltar a crescer e com ela suas receitas, regularizar mais à frente seus pagamentos de impostos, mesmo com multas. É justamente por esse comportamento econômico que a receita de impostos caiu muito mais que a forte desaceleração da economia.
A atividade econômica dá ainda sinais muito tímidos de recuperação e o quadro de receitas reduzidas poderá ser mais duradouro que o inicialmente estimado, o que torna ainda mais premente a adoção de um forte ajuste fiscal.
O quadro de colapso fiscal e de crise econômica é uma tragédia social. Milhares de imóveis têm sido retomados pelas instituições financeiras em decorrência da inadimplência de seus compradores. Só a Caixa retomou cerca de 15,6 mil imóveis em 2016. Os números de 2017 serão ainda piores. São famílias que estão perdendo a casa própria já depois de acumularem elevadas dívidas. Pessoas que já não podem pagar aluguéis estão se transformando em moradores de rua. Calculam-se em 15 mil os moradores de rua na cidade do Rio de Janeiro, enquanto abrigos da prefeitura conseguem atender apenas 2 mil pessoas. Pais desempregados têm sido a causa de jovens adolescentes deixarem o ensino médio para buscar alguma atividade informal remunerada, abandonando seus melhores sonhos e oportunidade de futuro. Nada pode ser pior para o futuro do país que crianças e jovens fora da escola.
O país precisa enfrentar de frente essa discussão e o mais rapidamente possível. O ajuste precisa ser estrutural e deve ser feito fundamentalmente pelo lado da contenção e redução da despesa pública, mas também pela racionalização da receita. Aumentos tópicos de impostos ou contribuições, como a feita com os combustíveis, são remédios paliativos, que apenas atenuam a gravidade do problema no momento atual, mas que, por adiarem sua resolução, terminam por agravá-lo. É como o paciente com grave infecção bacteriana que se limita a tomar remédios contra a febre. Haverá um rápido alívio, mas ela retornará com o quadro clínico mais agravado. Sem o antibiótico adequado, o mais provável é que o paciente morra.
Pelo lado da contenção da despesa, o ajuste até agora se limitou à aprovação da Emenda Constitucional 95, que estabeleceu um teto para o aumento de gastos primários. Essa medida, contudo, isoladamente, é insuficiente e insustentável, dado o crescimento vegetativo dos gastos com previdência e os aumentos salariais escalonados até 2019, em péssima hora concedidos pelo governo. É preciso muito mais. Em brilhante artigo, Gil Castelo Branco denuncia com toda razão que nosso Estado é paquidérmico, ineficiente e corporativo. Muitas despesas podem e devem ser cortadas, porém, todos entendem e aceitam a necessidade de um ajuste fiscal, desde que afetem apenas os outros.
Os trabalhadores aceitam o ajuste fiscal, desde que não se toquem em direitos, como a idade para a aposentadoria e outras vantagens. Os empresários pregam o ajuste fiscal, desde que preservados os subsídios da TJLP do BNDES e outras instituições federais, as renuncias fiscais e as elevadas receitas para suas instituições de classe, formadoras do Sistema S. Senadores, deputados, ministros de tribunais, juízes e membros do Ministério Público querem o ajuste fiscal, desde que não se reduzam as vantagens de seus cargos ou a estrutura onde trabalham, muitas vezes suntuosas.
O agronegócio deseja o ajuste fiscal, mantidos os subsídios para o custeio da safra. Os militares querem o ajuste fiscal, desde que se compreendam as peculiaridades de suas carreiras para não alterar seu regime jurídico. As instituições financeiras defendem o ajuste fiscal, mas não querem tributação sobre os ganhos com o spread bancário. Os empregados das estatais toleram o ajuste fiscal, desde que seus empregadores continuem estatais e mantenham a cobertura dos generosos planos de benefícios de seus fundos de pensão. É o fenômeno do rent seeking, tão bem exposto na obra “Por que o Brasil cresce pouco?”, de Marcos Mendes. Nessa luta de todos contra todos, nos perdemos e jogamos fora nosso potencial de crescimento.
É urgente que façamos um ajuste fiscal profundo, estrutural, capaz de modificar decisivamente a percepção dos agentes econômicos sobre o futuro do país para desencadear investimentos massivos e um sustentável ciclo de prosperidade. A cada mês que se passa sem aprovar a reforma da previdência, centenas de novos benefícios são concedidos a pessoas precocemente aposentadas, agravando seu déficit, bilhões de reais são acrescidos à dívida pública, milhares de pessoas perdem ou deixam de conseguir um emprego em razão da crise econômica. Sem aprovar essa reforma, aumentando a idade mínima para concessão de benefícios, incluindo os militares e ajustando outras distorções do sistema, veremos os gastos com previdência consumindo uma fatia cada vez maior do orçamento, nos impedindo de destinar maiores recursos para o que de fato pode mudar nossa história, a educação de nossas crianças e jovens. A cada mês de imobilismo, mais e mais brasileiros qualificados decidem deixar o país, em busca de oportunidades compatíveis com suas capacidades.
Mas não é só a previdência que deve ser ajustada. Precisamos rediscutir o Estado brasileiro. Temos muito Estado empresário e pouco Estado provedor de serviços públicos de qualidade. Por que não vender Banco do Brasil, Caixa, Petrobras e as outras mais de 400 empresas estatais que gravitam em torno do Estado brasileiro? Precisamos mesmo ter bancos comerciais estatais? Não são essas empresas e seus respectivos fundos de pensão objeto de loteamento político e alvo de negócios os mais espúrios, como tem revelado a operação “lava jato”?
Quem financiaria o plano safra? Ora, quem financia é o Tesouro. O Banco do Brasil é apenas o agente operador e é muito bem remunerado para isso. Todos os bancos poderiam exercer essa função. E quem financiaria imóveis para a baixa renda? De novo, todos os bancos, assim como todos os bancos pagam benefícios do INSS. Mas, e o petróleo? Ele não é estratégico? Sim, ele é estratégico para o Brasil, assim como é para todos os países e nem por isso eles precisam de empresas estatais para explorá-lo. Alguém tem alguma dúvida de que muito mais petróleo seria produzido no país? Toda forma de energia é estratégica, nem por isso todas as empresas que geram ou exploram energia devem ser estatais. Essas empresas, livres das inevitáveis ingerências políticas, poderiam ser muito mais importantes para o desenvolvimento do país privatizadas que como estatais, como ocorreu com a Vale e com a Embraer.
Há muitos outros gastos que precisam ser corrigidos no setor público. No âmbito dos servidores do Estado, licenças-prêmio por assiduidade ou licenças-capacitação de três meses a cada cinco anos de trabalho concedidas indiscriminadamente a todos os servidores públicos são fontes de despesa sem nenhuma contrapartida para a sociedade. A regra é os servidores gozarem dessas licenças como férias adicionais. Há uma indústria de cursinhos de idiomas ou de outras matérias de natureza e qualidade duvidosas especialmente criada para atender essa “demanda”, que certamente não é da sociedade, mas que gera gastos vultosos, afinal, é preciso contratar mais servidores para dar conta do trabalho que deve ser feito na ausência dos que estão licenciados. Até mesmo servidores em cargo de chefia e assessoramento superior se dão ao luxo de gozarem dessas licenças, produzindo a necessidade de o Estado pagar substitutos para essas funções!
Férias de dois meses por ano para juízes e membros do MP também são anacrônicas e não encontram justificativa razoável, assim como a multiplicidade de auxílios sem correspondência com o setor privado. Nos poderes Legislativo e Judiciário de todo o país, há a cultura de generalizado gozo de extensos períodos de recesso, além das férias legais, o que significa salários pagos sem contraprestação laboral. No Congresso Nacional, onde todo mundo ganha muito bem, independentemente da complexidade de suas atribuições, o teto do funcionalismo é meta e muitos conseguem ganhar mais que o teto, com uma injustificável cultura de horas-extras permanentes.
Há ainda a gritante questão do enorme contingente de cargos em comissão na administração pública. Contam-se mais de 22 mil os cargos em comissão, de livre nomeação, no Poder Executivo federal. Esses cargos, via de regra, são loteados e distribuídos entre os apoiadores do governo, isto é, têm seus ocupantes definidos a partir de critérios políticos subjetivos de quem os indicou. Isso tem de acabar. Ninguém elege senador ou deputado para que ele passe a controlar uma área qualquer do Poder Executivo, escolhida sabe-se lá como. Essa não é uma função normal da atividade parlamentar. A troca de apoio parlamentar por influência ou controle sobre áreas do Poder Executivo não pode ser vista como natural. Em verdade, é uma deformação do Estado brasileiro, responsável, em grande medida, por sua ineficiência.
A quantidade de comissionados na Câmara dos Deputados (12,5 mil) e no Senado (3,5 mil) também é impressionante. Números tão altos levam não só a um gasto muito elevado, como também à falta de profissionalização e a uma ineficiência brutal da administração pública. Um ajuste fiscal sério tem de incluir a redução dos cargos comissionados nos três poderes e nas três esferas da federação. A administração pública tem o dever moral de ser austera e eficiente, ainda mais num país tão gritantemente desigual como o nosso.
Também premente, embora não se trate de uma questão permanente, a devolução, o mais brevemente possível, pelo BNDES ao Tesouro, dos mais de R$ 500 bilhões em recursos que lhe foram ilegalmente destinados terá também forte impacto na contenção da dívida pública e redução da conta de subsídios implícitos e explícitos arcada por toda a sociedade. No ano passado, foram devolvidos R$ 100 bilhões, o que já representou uma economia de cerca de R$ 7 bilhões por ano na conta de juros do país. Há que se devolver o quanto antes todo o montante ilegalmente alocado pelo tesouro no BNDES para que os prejuízos para a sociedade possam ser reduzidos ao mínimo. Apesar das resistências da Fiesp e dos empregados do BNDES, isso não vai acabar com o banco nem com seu importante papel, vai apenas corrigir um gasto ilegal, ajudar fortemente no ajuste fiscal e colocar essa importante instituição no tamanho que ela tinha antes dessa colossal alocação de recursos.
Quanto antes conseguirmos efetuar um profundo ajuste fiscal e uma reforma do Estado brasileiro e passarmos a olhar de verdade para a educação, menor será nossa necessidade de endividamento, menos gastaremos com juros, menores serão as taxas de juros da economia como um todo, menor será a busca por crédito subsidiado, maiores serão a liberdade de escolha e as oportunidades dos investidores, mais cresceremos, mais sólida será nossa economia, menores as taxas de desemprego e maior a possibilidade de virmos finalmente a ser o país que o mundo inteiro sabe que podemos ser. Na próxima coluna, vamos tratar de outras medidas que podem contribuir para o ajuste fiscal, incluindo o lado das receitas. Nossa carga tributária, embora alta, é injustamente distribuída e muitos ajustes podem ser realizados sem necessidade de reformas constitucionais.
Júlio Marcelo de Oliveira é procurador do Ministério Público de Contas junto ao Tribunal de Contas da União.
Revista Consultor Jurídico, 1 de agosto de 2017, 16h57