ACADEMIA DE POLÍCIA
O Brasil precisa de uma nova cultura na investigação criminal
1 de agosto de 2017, 8h03
Não precisamos (apenas) de um novo Código de Processo Penal; precisamos (mesmo) de uma nova cultura processual penal. O momento exige mais que mero reformismo; necessário, de fato e de direito, estabelecer outro sistema de Justiça criminal. É de “(re)fundação” que se trata (Hassan Choukr)!
Nesse viés, pela superação de uma mentalidade tipicamente inquisitória que ainda forja a nossa práxis e caminhar constante segundo a “utopia possível” (Dussel) de uma ideologia processual penal acusatória, é que deve ser reconstruído o modelo de investigação preliminar.
O objetivo, por aqui, nos limites estreitos desta coluna, não é, por óbvio, expor todo o sistema processual penal acusatório e a disciplina correlata da instrução prévia do caso penal. A opção é bem mais simplória, qual seja, repisar algumas categorias fundamentais dessa importante fase da persecução criminal, porém não mais sob as lentes do autoritarismo inquisitório, e sim da dialética acusatória, sempre num diálogo permanente e informativo com os saberes criminológicos de vertente crítica.
Ponto zero: a premissa ética. A investigação criminal, enquanto atividade desenvolvida no meio social e que toca diretamente a vida de seres humanos concretos, também carece de um fundamento material. Nesse particular, nada mais apropriado que o princípio ético-crítico universal da filosofia dusseliana: a produção, a reprodução e o desenvolvimento da vida humana de cada sujeito concreto em comunidade. Esse é o paradigma fundamental. Tudo deve ser pensado a partir desse norte!
Finalidade instrumental: a sua função de filtro. A ideia de uma etapa preliminar de investigação enquanto mecanismo racional para a apuração de certa notícia crime, a fim de justificar a deflagração ou não de um processo penal contra alguém aparece como importante objetivo (instrumental ou preparatório) dessa fase persecutória, especialmente sob um viés redutor de danos (ou dores) no sistema de Justiça criminal.
A investigação se justifica enquanto procedimento necessário para a verificação daquilo que se diz a respeito de um suposto crime (juízo de possibilidade), somente autorizando a acusação formal de um ser humano concreto quando evidenciada justa causa para tanto (juízo de probabilidade), a fim de limitar o âmbito de incidência das chamadas “penas processuais” (Carnelutti), que dizem respeito a todas as consequências negativas incidentes sobre aquele que ocupa essa posição diante do sistema processual penal e de toda a coletividade.
Lugar do investigador: um espaço de poder. Todo sujeito que ocupa esse lugar deve ter consciência do seu papel democrático e, de outro lado, do risco ou potencial autoritário, sendo por tudo responsabilizado conforme a sua conduta (oficial ou oficiosa). O “critério de responsabilização”, por sua vez, não pode ser outro que não o fundamento ético material: o compromisso ou o desprezo pela vida humana concreta.
Inadmissível, por evidente, que um procedimento de instrução preliminar concebido para a evitação das “penas processuais” seja, de modo voluntário e consciente, convertido em causa geradora de dores ainda maiores. Vale lembrar (sempre) o caso Escola Base!
Com efeito, as “penas da investigação”, ou seja, o rótulo estigmatizante de investigado criminal e seus efeitos deletérios para a vida de sujeitos reais, é algo com o que todo investigador deve se preocupar e, por consequência, se responsabilizar na medida de seu comprometimento funcional.
Espera-se, para além da mera escusa ordinária do “cumpridor de códigos” segundo o “complexo de Eichmann” (Hannah Arendt) ou da alegação de inevitabilidade dirigida no fundo por uma sedução populista e conforme as maiorias de ocasião, algum tipo de resistência crítica. Mais do que (ab)usar do poder ou dele ser instrumento, o desafio sempre foi e continua sendo dele resistir, pagando o preço individual pela necessária defraudação de expectativas institucionais e sociais em relação ao desejo pela punição.
A violência: uma relação de mão dupla. O desvio pode ser considerado violento, mas também a reação estatal. Nesse sentido, o parâmetro para a análise da violência não pode ser a mera legalidade formal ou a simples rotulação burocrática decorrente do processo de criminalização. Isso porque muitos dados escapam à construção dogmática penal e processual penal tradicional como a própria seletividade do sistema ou as conseqüências reais do etiquetamento criminoso. Mais uma vez, desponta a relevância do diálogo criminológico (crítico) e o parâmetro ético material de toda ação ou reação humana que deve ser a consideração da vida dos sujeitos em coletividade. As prisões por situações de bagatela, por exemplo, deveriam ser (re)pensadas a partir dessa outra perspectiva de violências individuais e estatais.
Lógica eficientista: a busca por resultados. Em um mundo contaminado pela lógica eficientista e pela razão gerencialista, nada escapa aos índices classificatórios de produtividade.
Não são poucos os instrumentos para análise dos resultados das investigações criminais estatais; discurso que tem sido vendido como exigência democrática e constitucional para a fiscalização coletiva dos serviços públicos, mas que tem gerado um sério problema na base do sistema persecutório.
Na maioria das vezes, ainda que sob falso rótulo qualitativo, o esclarecimento da autoria surge como dado primordial ou, então, a correlação com oferecimento de denúncias e condenações criminais como critério definidor no jogo das estatísticas. Não à toa os investigadores transformam notícias-crime em crimes, desconsiderando que materialidade não pode ser pressuposta e saem à caça de gente para ocupar o lugar indiciário subjetivo e, de preferência, se possível, também de “bode expiatório” coletivo (René Girard).
O efeito concreto tem sido desastroso e, realmente, demanda um resgate do valor da função de filtro. Para tanto, mais que o gerencialismo estatístico, valeria mesmo a fiscalização qualitativa no que concerne à observância da legitimidade do procedimento conforme o índice material do devido processo legal substantivo. Essa deveria ser a grande meta operacional numa lógica da alteridade.
Enfim… Todas essas questões (e outras tantas que não couberam nesta apertada coluna) apenas demonstram a necessidade de um novo modelo de investigação preliminar, ou melhor, de uma nova cultura para um outro sistema de Justiça criminal. Repita-se: apenas um novo código ou simplesmente novos sujeitos operativos não serão suficientes para demover o autoritário inquisitorialismo e seus efeitos concretos na vida humana. Por isso, necessário discutir os fundamentos, as mentalidades e as ideologias de base, sempre na perspectiva de uma (re)fundação estrutural.
Leonardo Marcondes Machado é delegado da Polícia Civil de Santa Catarina, mestre em Direito pela UFPR, especialista em Direito Penal e Criminologia, além de professor de Direito Processual Penal em cursos de graduação e pós-graduação.
Revista Consultor Jurídico, 1 de agosto de 2017, 8h03