TIRO NO PÉ
As CPIs e a falta que faz o ministro Paulo Brossard
14 de abril de 2014, 7h26
Ministro erudito, exímio conhecedor do sistema presidencialista, com sua radical divisão de poderes, Paulo Brossard deixou muitas marcas em sua passagem no Supremo Tribunal Federal. Com certeza, a oxigenação da experiência política vivida por ele, a encarar com naturalidade as contradições da política que lhe são inerentes, responde pela visão aberta, plural da mesma política e dos políticos. O que se destaca, porém, na compreensão de Paulo Brossard não está expresso em seus votos; está inexoravelmente explicitado na confiança na política democrática praticada pelos políticos que temos, construída durante longo tempo de civilizado civismo.
O seletivo cinismo a tentar descredenciar cotidianamente nossa política e nossos políticos não passaria despercebido da visão de Brossard. E não seria despercebido devido à racionalidade que Brossard enxergava na política e nos políticos: os deputados e senadores foram eleitos pelo povo, que pode errar ou fazer escolhas inadequadas. Pior: não raro a democracia escolhe seus próprios carrascos. Residirá, porém, nas mãos do mesmo povo a possibilidade de modificação de suas escolhas. Será com este amadurecimento que um povo consolida sua própria democracia; jamais com a correção moralista de quem quer seja, ou dos chamados órgãos de fiscalização. Muitos menos do Judiciário.
Em outras palavras: ou o próprio povo arca com as consequências de suas escolhas, ou não amadurecerá, não aprenderá com seus erros. A questão é complexa, e não há como escapar do hegelianismo, ou de sua superação. Partindo-se da ideia de desigualdade não se alcança a igualdade; partindo-se da ideia de imaturidade não se consolida a maturidade. O desafio é ir ao âmago das questões e olhar para trás, vale dizer, para a história. Aliás, era Hegel quem dizia que a ave de Minerva só lenta voo ao entardecer. E com Marx sabemos que a (ciência) história ensina. Ou deve(ria) ensinar. Agora se passa a examinar o concreto; não mais a ideia. Eis aí o ponto de partida para a compreensão dos fenômenos sociais a desafiarem nossa compreensão e que foi o de Brossard.
Não há como deixar de se evocar a figura de Paulo Brossard quando do recente ajuizamento de mandados de segurança perante o Supremo Tribunal Federal por distintos grupos de senadores, para que esta corte — e não o próprio Poder Legislativo! — decida sobre a instalação, os objetos a serem investigados, o que podem ou o que não podem fazer os mesmos senadores na formação de comissões parlamentares de inquérito. Ressaltamos que em anos eleitorais, em qualquer canto do mundo onde se realizam eleições com regular periodicidade, é absolutamente normal que as tensões políticas aumentem. Não fosse assim, seria o caso de se questionar que democracia é esta onde os conflitos não são acirrados, e onde os que integram as disputas não procuram adquirir vantagens uns sobre os outros.
Nos idos de 1992 o então ministro Paulo Brossard plantou argumento até hoje irrespondido e insuperado pela jurisprudência do STF. Em diversos mandados de segurança impetrados pelo então presidente Fernando Collor de Mello, Brossard sustentou em todos a preliminar de incompetência dos tribunais para conhecer e julgar questões políticas. Mesmo tendo como relator um conservador como o antigo ministro José Carlos Moreira Alves, o argumento democrático para ser aplicado a uma Constituição igualmente democrática formulado por Paulo Brossard é de atualidade impressionante. O voto do relator em favor do conhecimento e julgamento pelo STF das questões políticas advindas do processo por crime de responsabilidade do ex-presidente teve por base o inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal, isto é, o disposto de que a “lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Munido de toda a extensão desta garantia fundamental, o STF, nos mandados de segurança subsequentes impetrados pelo então Presidente da República, fixou seu entendimento com base neste inciso.
Ao enfrentar este argumento, Paulo Brossard não poderia ter sido mais feliz: a lei não excluirá nada da apreciação do Poder Judiciário. Elementar isso. Mas a Constituição excluiu. Bingo! Se fez certo ou errado, não nos compete discutir. As precisas palavras do ministro Paulo Brossard podem ser lidas — o que aconselhamos fortemente neste instante — na obra publicada em 1996 pelo Supremo Tribunal Federal impeachment. Ainda que não se concorde com Brossard, a leitura de seus votos atentos e eruditos neste volume vale por bons anos nos bancos de qualquer faculdade de Direito.
A base da construção jurisprudencial de Brossard foi o concreto (e, portanto, o texto constitucional, que, como sempre lembramos, deve ser levado a sério): os artsigos 85 e 86 da Constituição Federal entregaram expressamente à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal a admissibilidade processual e julgamento do presidente da República por de crime de responsabilidade. Assim resta afastada qualquer interferência ou participação dos outros poderes do Estado brasileiro. O Poder Legislativo está excluído da elaboração dos regimentos internos dos tribunais, que são leis; o mesmo Poder Legislativo está fora da expedição de medidas provisórias. Porque não poderia o Poder Judiciário, no caso específico apontado pela Constituição da República, permanecer distante de sua atividade caracterizadora que é processar e julgar? Eis a resposta que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não ofereceu até hoje. No mesmo volume a que nos referimos, os votos vencedores apenas insistem no teor do artigo 5º, XXXV.
A primeira significativa questão política a chegar a STF após a Constituição Federal de 1988 foi outro mandado de segurança contra o arquivamento, pelo então presidente da Câmara dos Deputados Paes de Andrade, de pedido de admissibilidade para processo de crime de responsabilidade contra o ex-presidente José Sarney. Naquela altura, a preliminar de incompetência de nossa Corte Suprema fora arguida por Paulo Brossard, acompanhado apenas pelo antigo ministro Sepúlveda Pertence. Posteriormente, nos mandados de segurança do caso de Fernando Collor de Mello, o ministro Sepúlveda Pertence modificou sua orientação jurisprudencial, seguindo a maioria do Supremo Tribunal Federal.
Por que Brossard faz falta nos dias atuais? Primeiro, como salientamos, por sua enorme contribuição intelectual, no momento delicado de consolidação da democracia e da Constituição. Seu ponto de partida não foi apenas a ideia de democracia e de constituição: foi a vivência concreta numa sociedade de transição, onde no próprio tribunal em que atuou ainda estavam presentes ministros nomeados pela ditadura militar, portadores de cultura jurídica e política distante do novo constitucionalismo democrático dirigente que despontava no Brasil, revelando-se seguidor do constitucionalismo revigorador da Europa após Segunda Guerra.
Segundo (a merecer maior destaque): porque enxergava na política e nos políticos — e não nos tribunais ou nos órgãos de fiscalização — a responsabilidade de, numa democracia, fazerem aquilo que é óbvio: fazerem a política democrática. Talvez Brossard tenha sido o primeiro jurista a fazer, no Brasil, a diferença entre ativismo e judicialização. Ele sabia que o primeiro era nocivo à democracia. O segundo, contingencial, passível de ocorrer em qualquer parte do mundo. O posicionamento de Paulo Brossard não deixa dúvidas e vincula-se ao realismo (no sentido da contraposição ao idealismo ingênuo de quem acredita que a moral pode corrigir o direito democraticamente construído). O povo deve escolher seus representantes e estes devem decidir aquilo que a Constituição lhes mandou decidir. Não há espaços para substitutos, que serão sempre desingênuos. Se os representantes do povo decidi(re)m mal, troquemo-los. Parlamentares e presidentes podem ser substituídos de quatro em quatro (senadores de oito em oito). Juizes e ministros do STF, não.
Como poucos, Brossard assimilou a lição clássica de que os que têm o poder, deste tendem a abusar. Daí a divisão de poderes e funções, onde o modelo presidencialista é um deles. Aceita-se que se discuta se o presidencialismo é a mais adequado ou não. Ocorre que esta discussão, no Brasil, foi superada no pacto constituinte. Não cabe mais a quem foi constituído neste pacto questionar o que lá está firmado. Cabe aplicar. Nossa visão moral(ista) sobre o melhor sistema, neste momento, é irrelevante.
Mesmo com a teoria da separação dos poderes como entrave ao abuso do poder, a busca por dilatação do raio de atuação dos próprios poderes parece não ter fim. Parece que, a todo momento, existe a tentação de tomar a Criméia. Enfim, a sedução do imperialismo hermenêutico cresce na medida em que fragilizamos as instituições. No Brasil, e pelo resto do mundo afora, as cortes constitucionais não se cansam de decidir assuntos típicos da arena política, mas que, por fraqueza ou covardia do legislativo, não são enfrentadas pelo mesmo legislativo. Como quem tem o poder buscará sempre aumentar seu quinhão, é claro que as cortes avançam sobre um território que não lhe pertence e passam ao protagonismo político, subvertendo a política democrática. Veja-se como isso ocorre nos diversos setores do direito: por que será que o ativismo judicial cresce dia a dia? “Espaços vazios” — por mais paradoxal que possa ser o expressão — são logo “preenchidos”. E por quem? De onde vem o pamprincipiologismo e a commonlização do direito?
Ora, despiciendo lembrar que a legitimidade dos juízes é derivada: decorre da Constituição; aquela do executivo e do legislativo é direta: decorre do mesmo poder constituinte que elaborou a Constituição, uma vez que estes são votados diretamente pelo povo.
Como explicar, à luz da teoria da democracia, que as comissões parlamentares de inquérito, para acesso a dados bancários e fiscais, tenham de recorrer ao Poder Judiciário? Não há única palavra a insinuar esta possibilidade na Constituição, e é tal possibilidade produto da chamada interpretação constitucional, levada a cabo pelo Judiciário, para definir uma competência…a si mesmo, isto é: ele será seu próprio juiz na fixação de suas competências. E, nesse aspecto, o Judiciário “corre livre”, pela falta de reação da política e pela inércia da doutrina, cada vez mais caudatária das decisões tribunalícias.
Ao contrário da redação do parágrafo 3º do artigo 58 da Constituição Federal, que não deixa dúvidas — veja-se como os limites semânticos são importantes na democracia — quando determina que “§ 3º – As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas (…)”. A sabedoria do constituinte brasileiro merece elogio aqui: ninguém será preso, será privado de seus bens com o relatório final de uma comissão parlamentar de inquérito. O máximo a que se chega é o envio do relatório final de uma comissão parlamentar ao Ministério Público e Poder Judiciário, para, agora sim, o desencadeamento do devido processo legal.
É evidente que todos sabemos do peso da ação de uma decisão do Poder Judiciário ante o funcionamento de uma comissão parlamentar de inquérito. Mais evidente é a consciência de que o Judiciário tem desta sua faculdade, repito, por ele próprio criada.
No caso da disputa pela instalação e definição de objeto da comissão parlamentar de inquérito no Senado Federal a investigar a gestão da Petrobras, as denúncias sobre o metrô de São Paulo e o Porto de Suape (ou um destes objetos, ou dois…) aplica-se o mesmo. O que pretendem os senadores com o ajuizamento de mandado de segurança? Reduzirem sua capacidade de ação, distanciando-se da faculdade que o povo lhes outorgou, ou seja, decidir?
Querem os senadores explicitar à sociedade brasileira, que os elegeu, de que são incapazes de resolverem seus próprios conflitos políticos internos? Em palavras mais simples: querem os parlamentares “pagar esse mico”? E que, assim, necessitam de um “superego” (lembremos, sempre, da crítica de Frau Ingeborg Maus, quando acusava o Tribunal Constitucional alemão de querer ser o superego – Überich – da sociedade) para acudir-lhes a imaturidade e irresponsabilidade? Conflito é inerente à democracia. Num conflito, como é claro, uns perdem, outros ganham. Se uma comissão foi instalada ou não foi instalada; se funcionou ou não, este é um problema que o povo haverá de atentar e corrigir na próxima legislatura, por sinal, nas eleições de outubro próximo. Os senadores possuem sua preciosa tribuna, o amplo acesso aos mais penetrantes meios de comunicação para explicarem à população as razões dos sucessos e fracassos de sua atuação, o que igualmente é normal.
Infelizmente os senadores não foram capazes de resolver seus problemas e conduzem-no ao Poder Judiciário, que alegremente decidirá e dilatará sua esfera de atuação em desfavor do legislativo. O Pomo de Ouro já tem dono, pois.
Eis a falta de Paulo Brossard para dizer, acaso ainda ocupasse uma cadeira no STF: nada temos nada a ver com estes assuntos, [1] senhores Senadores. Conformem-se com a vontade política construída nas urnas, porque quem decide por último correrá o risco de errar por último. Contra tal mal, só há um remédio: a vontade do povo.
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[1] Para deixar claro e evitar mal entendidos, até porque os signatários são adeptos do constitucionalismo dirigente e compromissório: não se está fazendo um ode a uma espécie rasa de self restraint ou a qualquer enfraquecimento do papel da jurisdição constitucional. O que ser quer dizer, ao contrário, é que é exatamente a defesa de uma jurisdição constitucional séria que leva a que o STF deva responder negativamente a esse tipo de “tiro-no-pé” dada pelo Parlamento. Ou seja, jurisdição forte é ler, por exemplo, que onde está escrito que é atribuição
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.
Martonio Mont’Alverne Barreto Lima é professor titular da Universidade de Fortaleza (Unifor), doutor em Direito pela Universidade de Frankfurt.
Revista Consultor Jurídico, 14 de abril de 2014, 7h26