O Ministério Público e a magistratura nacional, com certa razão, têm combatido o projeto de lei do abuso de autoridade num ponto específico: a possibilidade de promotores, procuradores, delegados e juízes serem acusados de “crime de hermenêutica”.
O que não concordo, sobretudo com os membros do ministério público, é que essa preocupação legítima não é utilizada pelo ministério público (estadual e federal) quando lança dezenas de acusações contra outros agentes públicos simplesmente porque adotam outra interpretação que a não escolhida pelo ministério público.
É a aplicação da famosa “jurisprudência” (ditado) popular “pimenta no dos outros é refresco”, ou seja, para acusar o crime de hermenêutica existe, mas para ser acusado “é um absurdo”.
Por mais incrível que possa parecer, mas há membros do ministério público que ajuízam ações de improbidade ou ação criminal simplesmente porque entendem que determinado política pública, obra etc. não deveria ser implementada, ou seja, pretendem substituir os poderes executivo e legislativo nas escolhas decorrentes das prerrogativas desses poderes.
Em lapidar artigo publicado no Conjur (http://www.conjur.com.br/2017-abr-20/interesse-publico-marco-legal-abuso-autoridade-oportuno ) a professora Cristina Fortini apresenta argumentos que, no mínimo, deixa o ministério numa posição desconcertante.
Dentre outras questões, diz a professora:
“(…)
De toda forma, para além da conveniência (ao menos) de ajustes para o aprimoramento do artigo 1º do PLS 85/2017, é curioso perceber que a essência do receio ministerial concentra-se exatamente na questão da criminalização da divergência de interpretação.
Preocupa-se o Ministério Público em afastar qualquer tentativa de se imputar a seus membros a prática de abuso de autoridade, na hipótese em que o pedido formulado em ação por eles patrocinada, a partir de determinada compreensão da ordem jurídica, seja posteriormente rechaçado pelo Poder Judiciário.
Ocorre que o mesmo Ministério Público rotineiramente ignora a possibilidade de divergência interpretativa, dirigindo-se furiosamente contra autoridades públicas que ousam se filiar a corrente outra que não a que embala o pensamento ministerial.
Interessante notar que o argumento que nutre a reação ministerial retratada em documentos e recentemente verbalizada tanto em entrevistas não discrepa daqueles corriqueiramente apresentados pelos réus diante de ações movidas pelo próprio MP.
Não raras vezes, o agente público competente para o exercício da atividade administrativa se vê lançado no polo passivo de ações penais e de improbidade, pela prática de ato administrativo, sem dolo ou culpa, apenas porque a sua escolha ou conduta não representa a opção que aos olhos do membro do Ministério Público parece adequada. Sem falar nas teses criadas ao arrepio da lei e dos mais básicos princípios constitucionais, como é o caso da “presunção de dolo”.
É interessante como de nada adianta a posição divergente àquela do MP estar fundada em entendimento jurisprudencial e/ou doutrinário pré-existente — e esse é um problema que precisa ser debatido. Isso sem falar no tom ameaçador das recomendações por meio das quais o Ministério Público costumeiramente não se limita a exigir o saneamento de supostas falhas, mas chega a exigir a adesão a opções de política pública que, na sua visão, são as melhores.
Ora, se não é correta a punição de membros do Ministério Público, porque há de lhes ser assegurada a liberdade para eleger determinada linha interpretativa, igualmente não se deveria cogitar do ajuizamento de ações em face de outras autoridades públicas nas hipóteses em que o comportamento adotado não se amolda àquele desejado pelo órgão ministerial, mas se afina com entendimento doutrinário ou jurisprudencial, ainda que não pacíficos.
Promotores e procuradores da República costumam resistir bravamente à ideia de que à autoridade administrativa deve ser assegurada a mesma liberdade hermenêutica que pretendem lhes seja garantida.
Se é crucial afastar o “crime de hermenêutica” para o exercício satisfatório das prerrogativas que a Constituição da República garante aos promotores, procuradores de Justiça e procuradores da República, há se se salvaguardar o mesmo espaço de interpretação para as demais autoridades. Afinal, ubi eadem ratio ibi idem jus, ou seja, “onde houver o mesmo fundamento deverá haver o mesmo direito”. Ou ainda: ubi eadem legis ratio ibi eadem dispositivo (“onde há a mesma razão de ser, deverá prevalecer a mesma razão de decidir”).
Em outras palavras, pau que não dá em Chico não pode dar em Francisco. Diante de uma diversidade de entendimentos a respeito de certo assunto, há de se assegurar à autoridade competente o direito a atrelar-se à determinada linha interpretativa, sem asfixiar o espaço decisório do agente público. Mas, definitivamente, não é isso o que vem ocorrendo.
A liberdade que se pretende conceder ao Ministério Público de ater-se a uma ou outra linha de pensamento acolhida pela jurisprudência também deve ser garantida os demais agentes públicos, sob pena de ser mantido um privilégio inadmissível a determinados órgãos controladores — que passam a se estabelecer acima do bem e do mal. Tolher tal liberdade deve ser considerado um caso de abuso de autoridade.
O momento convida ainda a uma outra reflexão a respeito da qual o PLS 85/2017 nada disse expressamente — mas deveria.
Entre os tipos penais distribuídos pelo PL 85/2017 não há previsão específica sobre o enquadramento, em termos de abuso de autoridade, da instauração de inquérito civil ou criminal ou do ajuizamento ações pelo Ministério Público, a despeito de evidenciada a prescrição da pretensão persecutória.
Tenho presenciado o desassossego de pessoas que se veem compelidas a contratar advogado, para o oferecimento de defesa e acompanhamento de ação proposta em flagrante desconsideração à prescrição.
O Supremo Tribunal Federal firmou tese com repercussão geral, nos autos do Recurso Extraordinário 669.069, sobre a prescritibilidade das ações de reparação de danos à Fazenda Pública decorrentes de ilícito civil. A despeito disso, ainda hoje o Ministério Público propõe ações contra atos alcançados pela prescrição. E não me refiro a casos em que se imputa aos réus a prática de improbidade administrativa. Refiro-me a casos em que o propósito é exclusivamente o ressarcimento ao erário. A situação é ainda mais dramática quando se postula e, pior, se obtém o bloqueio dos bens dos réus (a propósito, é urgente discutir a absurda jurisprudência a respeito deste tema, o que será objeto de outra coluna).
Ora, prerrogativas funcionais são ferramentas imperiosas ao exercício responsável das atribuições inerentes ao cargo público. São intoleráveis e igualmente danosas à sociedade os excessos e a insensatez. Movimentar a estrutura do Poder Judiciário e do próprio Ministério Público em busca de ressarcimento não mais possível diante do transcorrer dos dias é também lesivo ao erário e ao interesse público.
Enfim, parece evidente que a reflexão sobre os equívocos e exageros das autoridades responsáveis pelo controle é muito relevante, inclusive para ser preservado o importante papel que a Constituição da República lhes conferiu. Disciplinar o assunto mediante lei, mais do que oportuno, é fundamental.”.