CONTAS À VISTA
Descontrole com pessoal nesses 50 anos do Decreto-Lei 200 leva Estado à “falência”
1 de março de 2017, 13h37
Além de ter sido o sábado de Carnaval deste 2017, o último dia 25 de fevereiro merece ser lembrado pela efeméride do aniversário de 50 anos da edição do Decreto-Lei 200.
A despeito de ser oriunda da ditadura militar, a vetusta norma ainda hoje é uma das nossas maiores referências de consolidação legislativa sobre organização e reforma administrativa, assim como contém importantes normas cogentes de Direito Financeiro em seu Título X.
Em tempos de um aventado projeto de lei de “falência”[1] dos Estados, o cinquentenário do DL 200 nos traz preciosas lições sobre o quanto irracional e dolosamente negamos cumprimento a alguns imprescindíveis parâmetros substantivos ali inscritos de gestão e controle de pessoal pela administração pública.
Findo o Carnaval que nos entorpeceu e distraiu um pouco das crises econômica, fiscal, política e social pelas quais temos passado (em rota de um verdadeiro “Estado de Coisas Inconstitucional” generalizado[2]), urge voltarmos a falar do gasto de pessoal, com consciência acerca do tamanho que o Estado brasileiro deve ter para cumprir os desideratos da nossa Constituição cidadã, à luz dos meios de financiamento que lhe foram também constitucionalmente conferidos.
A tragédia da pretensa “recuperação fiscal”[3] do “calamitosamente”[4] “falido” estado do Rio de Janeiro e dos demais estados[5] em situação análoga se desenrola rumo ao caos. A isso assistimos sem que as medidas de recondução do artigo 169, parágrafo 3º da Constituição tenham sido suficientemente executadas e sem que as vedações do artigo 22, parágrafo único da Lei de Responsabilidade Fiscal sejam, de fato, obedecidas.
Tampouco há clareza sobre o volume de renúncias de receitas[6] concedidas ao arrepio do nosso ordenamento, sem falar em outras medidas possíveis de controle[7], como, por exemplo, o contingenciamento dos gastos com publicidade, contratação de shows artísticos e novos projetos de obras e serviços.
Soa quimera, má-fé ou quase ingenuidade acreditarmos que agora, porque o governo federal pretende exigir “contrapartidas”[8] para renegociar as dívidas dos estados-membros, haverá algum avanço qualitativo sobre o descontrole com a despesa de pessoal que, urge reconhecer, nos assola desde antes do próprio DL 200/1967.
As idas e vindas quanto à renegociação das dívidas estaduais chegaram ao paroxismo insano de aventar a hipótese da suspensão(!?) por três anos[9] da LRF. Só poderia ser brincadeira carnavalesca falar em suspender o que não se consegue fazer cumprir há anos, a despeito de se tentar revestir de novo o que já está na LC 101 e, antes dela, na CF e, antes dela, no DL 200!
As mesmas regras sobre não fazer novas admissões, não majorar a despesa de pessoal a qualquer título e não contratar horas extras, dentre outras que pretendem impor controles formais sobre o inchaço da folha de pessoal, repetem-se em lugares distintos sem que avancemos um milímetro no processo do seu cumprimento enraizado pelo gestor e pela sociedade.
Fica aqui, pois, o desafio ao leitor: compare e veja que são quase iguais as vedações do artigo 109 do ADCT (trazido pela EC 95/2016) com as vedações do artigo 22, parágrafo único da LRF. Também são extremamente semelhantes as “contrapartidas” que se pretende fixar agora nesse projeto de lei de “recuperação fiscal” (já aventadas no bojo do seu antecessor, o PLP 257/2016) em face do arcabouço já disponível de vedações e sanções da LRF.
Nada há de novo no debate, porque, em maior ou menor medida, são as mesmas regras já vigentes desde a LC 101 e à luz do artigo 169 da CF, que impõem um parâmetro matemático de controle sobre o gasto de pessoal, sem que tenhamos seriamente avançado na reflexão de fundo que lhe dá ensejo.
Para além desse quadro enlouquecido de curto prazo, nosso impasse histórico reside na falta de compreensão dos custos e dos resultados da ação governamental, para fins de fixação do quantitativo do quadro de pessoal e até mesmo de comparação de produtividade média dos servidores públicos em face das funções correlatamente prestadas na iniciativa privada por trabalhadores comuns.
A primeira disposição de clarividência solar no DL 200 (sobre cujo cumprimento, aliás, ainda estamos na idade das trevas) reside no seu artigo 79, onde lemos que “a contabilidade deverá apurar os custos dos serviços de forma a evidenciar os resultados da gestão”. Em igual medida, o controle deve ser racionalizado à luz do binômio custo-risco, como lemos no artigo 14 também do DL 200, “mediante simplificação de processos e supressão de controles que se evidenciarem como puramente formais ou cujo custo seja evidentemente superior ao risco”.
Mas quem promete cumprir tal análise de custos e resultados, deveria formular de modo consistente metas físicas e financeiras em seus instrumentos de planejamento setorial e orçamentário à luz das obrigações constitucionais e legais de fazer protetivas dos direitos fundamentais[10]. Ao invés disso, preguiçosamente nossa administração pública — pouco aderente ao princípio da eficiência, a despeito de ele ter sido o mote da criação do Departamento Administrativo do Serviço Público em 1938, do DL 200/1967 e da EC 19/1998 — acomoda-se em torno de vinculações ou limites formais, seja na fronteira do gasto mínimo em saúde e educação, seja nos limites máximos com despesa de pessoal e endividamento.
Paradoxalmente, uma vez dado o limite máximo de despesa de pessoal, em vez de avançarmos no controle de custos e resultados, nossa gestão pública desidiosamente se deixou empurrar, dentre várias circunstâncias e condicionantes de matiz político-patrimonial e corporativista, para gastar o teto, independentemente da real necessidade daquele gasto em face dos custos de produção dos resultados socialmente almejados.
Ora, ora… De que adianta termos mais uma (a enésima?) norma que imponha limites formais à despesa de pessoal, seja como contrapartida ou não, se até agora não conseguimos dar vazão e cumprir os cinquentenários ditames do DL 200? A título de exemplo, lembramos que os incisos II, IX e X do seu artigo 94 determinam que a gestão de pessoal na administração pública deve ser aderente aos princípios de:
II – aumento da produtividade,
IX – fixação da quantidade de servidores, de acordo com as reais necessidades de funcionamento de cada órgão, efetivamente comprovadas e avaliadas na oportunidade da elaboração do orçamento-programa, e estreita observância dos quantitativos que forem considerados adequados pelo Poder Executivo no que se refere aos dispêndios de pessoal. Aprovação das lotações segundo critérios objetivos que relacionam a quantidade de servidores às atribuições e ao volume de trabalho do órgão.
X – Eliminação ou reabsorção do pessoal ocioso, mediante aproveitamento dos servidores excedentes, ou reaproveitamento aos desajustados em funções compatíveis com as suas comprovadas qualificações e aptidões vocacionais, impedindo-se novas admissões, enquanto houver servidores disponíveis para a função.
O que parece óbvio nos princípios acima citados é que a ideia de produtividade no serviço público está intrinsecamente ligada à correlação entre custos estritamente necessários ao alcance dos resultados, o que passa pelo controle do quadro de pessoal. Mas o óbvio não é fácil.
Para avançar no controle da produtividade, é preciso mensurar quantitativos de pessoal no setor público que tenham, tanto quanto possível, parâmetro correlato na iniciativa privada. Eis, aliás, o teor do artigo 95 do DL 200, onde se exige a “verificação da produtividade do pessoal a ser empregado em quaisquer atividades da Administração Direta ou de autarquia, visando a colocá-lo em níveis de competição com a atividade privada ou a evitar custos injustificáveis de operação”.
Porém, o mais difícil mesmo em nossa realidade atual é a eliminação do pessoal ocioso ou comprovadamente ineficiente, a que se referem os artigos 99 e 100 do cinquentenário diploma em comento. Quase impossível também é a concretização ordinária da demissão dos servidores por desempenho insuficiente na forma do artigo 41, parágrafo 1º, inciso III, bem como do corte efetivo de servidores comissionados a que se refere o artigo 169, ambos da CF/88.
Lendo os preceitos acima, a sensação de incompetência intergeracional se avoluma, porque é inconcebível que não consigamos exigir dos nossos gestores públicos — pelo menos desde 1967 — que eles alcancem o aumento da produtividade dos servidores públicos, por meio da fixação de quantitativo de pessoal estritamente aderente às necessidades do serviço e que racionalize o pessoal ocioso, seja por meio de avaliação de desempenho quanto à sua ineficiente ou desidiosa atuação, seja por meio da extinção de quadros.
Exigir o cumprimento desses dispositivos é dar vazão material ao artigo 169 da CF, onde a redução do excesso de gasto de pessoal deve ser feita a partir de comissionados e servidores não estáveis, cuja dispensa não cause prejuízo ao bom funcionamento e à continuidade dos serviços públicos.
Ao nosso sentir, o próprio limite de alerta e suas vedações, na forma do artigo 22 da LRF, indicam parâmetros de introdução a uma recondução dos limites de gasto com pessoal em consonância com os dispositivos acima citados do DL 200, para que o gestor traga tal gasto para dentro daquela que é a configuração não só de segurança e estabilidade da gestão fiscal, como também de real necessidade do serviço público.
A dicção cinquentenária do Decreto-Lei 200 nos leva a refletir qual é o foco nuclear e resolutivo do problema do gasto de pessoal nesse momento em que há tantos entes federados, senão já com a ultrapassagem total do limite a que se referem os artigos 19 e 20 da LRF, certamente enfrentando os limites prudencial ou de alerta (95% e 90% daquele) batendo às suas portas.
Qual orientação caberá para que tragamos todos os entes da federação para um parâmetro preventivo de controle de despesas de pessoal? Se não falarmos de controle de despesa de pessoal referidos à real demanda de serviços, se continuarmos a tratar como se fosse um referencial matemático de limite máximo de gasto, sem conteúdo substantivo, efetivamente, vamos prosseguir na vivência de uma realidade que conjuga prestação de serviços públicos de má qualidade com “falência fiscal” dos entes, enquanto a LRF parece operar apenas uma referência de controle formal distante.
O desafio é a produtividade do quadro de servidores referida à real demanda de serviços que aquela sociedade tem, seja pelo número de cidadãos a serem beneficiados por uma determinada política pública, seja pela própria logística de cada atendimento que o poder público tiver de fazer, na forma do artigo 10, parágrafo 7º do DL 200. Não podemos desconhecer essa norma cinquentenária que nos ensina a pensar como desinchar quadro de pessoal num momento de crise fiscal como esse.
Por outro lado, há tentativas de burla[11] ao limite de despesas de pessoal, com o falseamento interpretativo e até mesmo com o manejo excessivo de parcerias com o terceiro setor, que, em suma, comportam-se como terceirização substitutiva de mão de obra, na forma do artigo 18, parágrafo 1º da LRF, ainda que alguns dos nossos tribunais de Contas[12] assim não entendam.
Superar tais burlas e impasses requer compreensão plena do problema. Isso, obviamente, não passa pela absurda hipótese de “suspensão” da vigência da LRF, tampouco pela repetição obsessiva de regras que já vigoram há tanto tempo, como se tal reiteração fosse capaz de fazê-las “pegar” ou “vingar” na nossa realidade.
Para que o cálculo do quantitativo de servidores não seja apenas um patamar vegetativo de contratações consumadas — sem a adoção de critérios de produtividade mínima —, é preciso enfrentar a falta de profissionalização da gestão de pessoas à luz dos artigos 94, 95 99 e 100 do DL 200/1967.
Servidores devem ser avaliados diuturnamente de acordo com seus encargos funcionais e seus regimes de trabalho, não apenas para fins de promoção e progressão formal nas carreiras, mas também para mantê-los capacitados e aderentes ao planejamento da instituição. O quadro de pessoal precisa ser gerido, sobretudo, segundo metas individuais e de equipe, que apontem para a produtividade capaz de reduzir a demanda por novas admissões, em um indiscutível cenário de restrição orçamentária.
Em reforço às vedações e limites formais, não é admissível, do ponto de vista da economicidade e legitimidade da gestão de pessoas na administração pública brasileira, que haja a contratação de novos servidores, na ausência de parâmetro de mínima produtividade. Precisamos, pois, exigir que todos os entes da federação estipulem metas individuais e metas de equipes de trabalho para os servidores públicos que revelem não só encargos funcionais de rotina, mas que racionalizem a demanda presente e futura de novas admissões de pessoal.
Em suma, é preciso introjetar na nossa realidade o dever de obediência imediata à estrita legalidade quanto ao artigo 169 da Constituição e à LRF, bem como é preciso resgatar, com ênfase, a profissionalização da gestão de pessoas e a cultura orientada a resultados previstas cinquentenariamente no DL 200, para que não se repita, daqui a alguns anos, a atual e desrespeitosa trajetória de “falência” do Estado, dentre outros motivos, por incompetência deliberada na gestão de pessoas.
[1] Notícia disponível em http://www.valor.com.br/brasil/4876162/governo-apresenta-projeto-para-lei-de-falencia-dos-estados.
[2] Como debatemos em http://www.conjur.com.br/2017-jan-31/contas-vista-saude-aos-presidios-temos-estado-coisas-inconstitucional.
[3] Vide http://g1.globo.com/economia/noticia/fazenda-envia-para-a-casa-civil-novo-projeto-de-recuperacao-fiscal-de-estados.ghtml.
[4] Como se pode ler no oportuno artigo do colega de coluna “Contas à Vista” e professor José Maurício Conti disponível em http://www.conjur.com.br/2016-jun-28/contas-vista-crise-leva-financas-publicas-estado-calamidade e em http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2016/06/governo-do-rj-decreta-estado-de-calamidade-publica-devido-crise.html.
[5] Minas Gerais e Rio Grande do Sul: http://veja.abril.com.br/economia/governo-de-minas-gerais-decreta-calamidade-financeira/ e http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,governo-do-rs-decreta-estado-de-calamidade-financeira,10000089859.
[6] Eis o que se pode ler em http://www.ebc.com.br/noticias/economia/2016/11/entenda-polemica-dos-incentivos-fiscais-no-estado-do-rio-de-janeiro e http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2016/10/decisao-da-justica-impede-o-rj-de-dar-novas-isencoes-fiscais.html.
[7] Como suscitamos em http://www.conjur.com.br/2016-ago-17/elida-pinto-controle-orcamentario-prol-direitos-fundamentais.
[8] Como se pode ler em http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/POLITICA/523374-MAIA-PROJETO-DE-RECUPERACAO-FISCAL-EXIGIRA-CONTRAPARTIDAS-DOS-ESTADOS.html.
[9] Notícia disponível em http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2017/02/17/internas_polbraeco,574740/governo-vai-congelar-lei-de-responsabilidade-fiscal.shtml.
[10] Como já suscitamos em http://www.conjur.com.br/2017-jan-04/ano-prefeitos-novos-nao-trazem-milagrosamente-melhor-gestao e http://www.conjur.com.br/2016-dez-06/contas-vista-sociedade-nao-planeja-aceita-ma-qualidade-gasto-publico.
[11] É o que se lê em http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,tribunais-de-contas-deram-aval-a-maquiagens-dos-governos-estaduais,10000088564 e http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2704200902.htm.
[12] Vide http://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/contratacao-de-terceiro-setor-nao-esta-nos-limites-de-gastos-com-pessoal-1.htm.
Élida Graziane Pinto é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Revista Consultor Jurídico, 1 de março de 2017, 13h37