SENSO INCOMUM
2016, o ano da submissão final do Direito: só a vergonha nos libertará
Abstract: E quando o primeiro professor ensinou o ECA cantando funk, o caos já se instalara. De há muito. E quando o professor abriu a palestra dizendo “sentença vem de sentire’ e foi aplaudido de pé, o império do Direito já ruíra. De há muito.
A substituição do direito pela moral (ou por opiniões pessoais, ideológicas) tem enfraquecido sobremodo a democracia. Há um livro interessante de Kyame Appiah, O Código de Honra, em que mostra como algumas práticas foram abandonadas e o valor do constrangimento. Em um parafraseio da tese de Appiah, é possível afirmar que foi o constrangimento a arma mais poderosa. Com efeito, ele diz que a causa do fim dos pés atados das chinesas foi a honra (no sentido da desonra provocada pela prática em relação ao observador externo) e não a lei ou a religião.
Durante mais de mil anos os pés das meninas chinesas eram atados, para que não crescessem e ficassem pequenos e delicados, em torno de 7,5 cm. A prática durou mais de mil anos e acabou em 20. Appiah pesquisou e descobriu que outros países estavam se inteirando desse hábito chinês e o repudiavam. Isso constrangeu enormemente os chineses. E foi decisivo. Assim também ocorreu com os duelos na Inglaterra. Se a prática de atar os pés era vergonhosa, a dos duelos passou a ser vista como ridícula. E ambas acabaram. Ele diz também que no Brasil, a escravidão no início era normal, depois, num curto período ficou “menos normal” e, em seguida, algo abjeto, a ponto de netos não entenderem como seus avôs foram capazes de escravizar. No século XIX, um funcionário chamado Kang consegue convencer o establishment chinês de que a prática de atar os pés era, além de todos os males, ridícula e envergonhante. E o fez comparando outros povos que não amarravam pés.
Talvez no Brasil as péssimas práticas de não levarmos a sério a Constituição possa um dia ser revertida porque ela — essa prática — nos envergonha e, porque, para outros povos, soa como ridícula. E esse deverá nos causar constrangimentos tais que abandonaremos essa prática. O mesmo se diga em relação ao patrimonialismo. Quem sabe? Não esqueçamos que “a prática” de substituir o direito por juízos morais também, já por si, é uma visão moral, por mais (imoral e) paradoxal que isso possa parecer. E essa “prática de substituir o direito pela moral” deve ser enfrentada. Democracias se fazem com leis e constituições feitas na esfera pública e respeitadas pelos aplicadores. Não existe democracia quando a lei é substituída pelos juízos particularistas (que são juízos morais). No fundo, isso devia nos envergonhar. Papel da doutrina? Simples: criar os constrangimentos para extinguir essa prática.
Por isso, esta coluna natalina é uma insistência nos pontos que venho batendo. Venho tentando criar códigos de honra para acabar com práticas que vêm fragilizando nossa democracia e nosso país. Digo isto para lembrar que o ano de 2016 ficará marcado como o ano mais jurídico-canibal da história do Direito. O ano em que a comunidade jurídica se portou como a acídia, o animal marinho suprassumo do canibal: aninha-se em um canto confortavelmente e consome toda a sua energia. Quando não há mais energia, devora o próprio cérebro. Eis a alegoria do homo jurídicus. Profetas do passado. Correm no Facebook para dizerem que aprovaram um texto na Faculdade do Balão Mágico. Ou que colocaram as notas no mural. Invadem a minha página para apresentarem um livro com perguntas e respostas de concursos públicos (que, aliás, estão acabando por culpa dos próprios juristas).
Quem está por trás destas práticas que fragilizam o Direito? Os próprios juristas. As carreiras jurídicas. E os advogados, é claro. E os professores. E parcela expressiva da doutrina. Em vez de apoiarem um grau mínimo de autonomia do Direito, praticam o canibalismo. Como pagãos epistêmicos, tece(ra)m loas aos que descumpriram a Constituição. Grita(ra)m “lá vem o novo”, quando começaram a atropelar as leis e a Constituição. Mal sabiam que ali estava o ovo da serpente.
O homo juridicus pindoramense trocou o direito pela moral e pela política e ganhou de presente um enorme pacote econômico. Bingo. Bateu panelas e ganhou uma palha de aço. Dia a dia, juristas troca(va)m de lado. Tudo como torcedores. Gol de mão? Vale…e não vale. Se for a favor do nosso time, grande juiz. Se for contra, deve ser esfolado. Direito? Ah, prá que direito? – “Não me venha com positivismos” (essas “falas” chegam a ser hilárias; e se repetem todos os dias).
Estamos indo “bem” nestes tempos de pós-verdades no direito. Tudo vira narrativa. Na medida em que se institucionalizou o mantra de que “princípios são valores”, é possível trocar o direito por uma palavra mágica como princípio da rotatividade, da amorosidade, da fatalidade, da dialeticidade, da verdade real, etc. Juízes e promotores estão convictos que eles o são vinte e quatro horas por dia. Unção. Como sacerdotes. Claro: por isso a resposta que dão nunca é a que vem de fora (direito, fatos, constituição, doutrina); ela vem de dentro, de sua subjetividade, de sua livre convicção (o símbolo disso é o juiz Xerxes, em um debate no TRT-SP, sob os aplausos de uma parcela considerável de seus colegas, dizendo: “se eu tiver que fundamentar como manda o NCPC, me mudo para o Zimbawe”).
Resultado: temos milhares de judiciários, milhares de ministérios públicos, onze supremos, trinta e três essetejotas. Resultado: meia cidadania. Meio direito. Na verdade, um direito substituído pela moral e pela política, para dizer o mínimo. Observem até onde nos levaram as práticas de desrespeitar a lei, a CF, substituindo o direito pela moral e pela política, ao ponto de o cientista político Werneck Vianna afirmar que “tenentes de toga comandam essa balbúrdia jurídica”, gravíssima acusação ao ativismo do poder judiciário e ministério público. Urgentemente, as associações do MP e PG deveriam se reunir e olhar para dentro de si e fazer uma autocrítica.
Pindorama está ruindo e o homo juridicus está preocupado em como decorar o ECA (que, aliás, nem é cumprido). Porque cai na prova da Ordem e nos concursos. Gostam de citar Savigny e sua metodologia. E misturar autores. E criticar Kelsen, chamando-o de exegeta. Essa é a “sofisticação”. Estamos construindo próteses para fantasmas, como dizia Warat. Portarias valem mais do que a Constituição. “— Consultemos a instrução normativa numero X”. “— Mas, e a Constituição?”. “— A Constituição? — Lá vem de novo vocês com essa conversa de Constituição”, dizia um professor na Capes. Bom, no Império a Constituição abolira em 1824 a pena de açoites. O Código de 1830 instituiu açoites. E o Código valeu mais do que a Constituição. Novidade? Qual é a diferença para hoje? Nem mesmo os códigos cumprimos. O CPC novo já virou um frangalho. Os embargos são julgados como se fossem os mesmos de antes de 2015. O convencimento (retirada da palavra “livre” do art. 371) continua “muito livre” (até mesmo para o STJ). O STF aniquila milhares de recursos em clara desobediência ao art. 489 do CPC (ler aqui). Conduções coercitivas são autorizadas à revelia da Lei e da CF (Silas Malafaia é um bom exemplo do “efeito rebote”: aplaudiu a ilegal condução coercitiva de Lula e quando foi a vez dele, não havia ninguém para defendê-lo – pau que bate em Lula, bate em Silas…[1]). Faz-se analogia em malam partem nos tribunais. Inverte-se o ônus da prova. Enquanto isso, o doutrinador e desembargador Guilherme Nucci diz que os vazamentos nas delações não geram nulidade. Normal. E a lei? A lei nada vale. O que vale é a opinião pessoal do doutrinador. Do mesmo modo, veja-se o artigo que três juízes escreveram na Folha de São, chamado O Guardião da Constituição. Nele, defendem a liminar concedida pelo Ministro Fux no caso do projeto das dez medidas. Em nome da Constituição, contra a Constituição. Assim vamos indo em direção ao tenentismo denunciado por Werneck.
Enfim, tudo isso é fruto de muito esforço, como ironizava Nelson Rodrigues. Teses como o juiz-boca-da-lei-morreu-e-agora-é-a-vez-do-juiz-dos-princípios, neoconstitucionalismos de todas as espécies, clausulas gerais, os fins justificam os meios, prova ilícita de boa fé… Estas coisas não são filhas de chocadeira. Alguém bolou isso. E transmitiu nas salas de aula. E escreveram nos livros “tipo galinha pintadinha”. Que vendem aos borbotões. O lema é: quanto pior, melhor.
Na contramão do homo juridicus, uma orientanda minha, Clarissa Tassinari, defendeu, no dia 19 de dezembro de 2016, tese sobre a “supremacia judicial consentida”, mostrando que tudo isso que está aí tem uma participação direta “queremista” da comunidade jurídica. Na mosca. Georges Abboud escreveu um texto sobre “Submissão e Juristocracia”, numa alusão ao best seller Submissão, de Michel Houellebecq. Bingo. E eu acrescento um livro mais antigo, bem antigo, chamado Discurso da Servidão Voluntária, de 1548. Sim, destruímos o direito em Pindorama a partir de um pacto de consentimento, submissão e servidão voluntária. Concedemos o skeptron (da fala de Homero) ao judiciário. De posse do skeptron (ou da concha, do livro O Senhor das Moscas — assistam aqui o programa Direito & Literatura ), é possível falar…qualquer coisa. A concha e o skeptron não nos foram devolvidos. Houve uma fagocitose epistêmica: agora tudo virou… concha. Já não há interdição. Não há como enfrentar o estado de natureza interpretativo, porque ele é fomentado por quem tem o skeptron.
Apostamos na coisa mais perniciosa para o direito: transferimos o polo de tensão para um só lugar. A tese: o direito é o que os tribunais dizem que é. E o STF levou isso aos píncaros. É o nosso realismo tupiniquim. Nosso realismo tipo Pink e Cérebro”. (ver o filminho aqui). E, veja-se: o nosso realismo jurídico é diferente. Ele é um realismo patrimonialista, como, sob outro viés, denuncia Danilo Pereira Lima no seu livro Constituição e Poder. Um realismo patrimonialista-com-racionalidade-teológica. Não basta que as coisas sejam minhas. Quero também os sentidos. As significações. No princípio é “a minha nominação das coisas”. Por isso x vira y. Dá-se o sentido que se quer. Coisa de fazer inveja a Humpty Dumpty, de Alice Através do Espelho. Por isso é possível que alguém fique preso mais de 500 dias pelo crime de porte ilegal de arma (preventivamente). Por isso, é “legal” vazar depoimentos. Espalhar delações ao vento. E publicizar interceptações ilegais. Também por isso, em audiência, é “permitido” a testemunha dizer aos advogados “vocês são um monte de lixo” e nada acontece, porque o juiz nada faz. Tudo ficou invertido em Pindorama. O skeptron dá esse poder. O direito de Pindorama se transformou… no próprio skeptron.
E tudo convalidado na — e pela — rapidez das redes nesciais, nos resumos e nos enunciados fabricados em workshops. Por isso, minha insistência e minha luta contra as práticas predatórias do direito, do mesmo modo que o funcionário Kang denunciava a prática dos pés atados na China. Pela enésima vez: Voltemos a estudar direito. E que o respeitemos. E por isso proponho uma hermenêutica ortomolecular: para expulsar os “radicais livres” da “livre interpretação e do subjetivismo” (se me entendem a ironia).
Vamos resistir? Pindorama está se esvaindo… Em nome do direito, estamos acabando com o próprio direito. O que fizemos com nossa Constituição? O que restou da advocacia (excetuados os grandes escritórios)? O meirinho do fórum já olha atravessado para o causídico na chegada. Como é possível que milhares de advogados sejam submetidos a tratamento degradante todos os dias, em um país em que temos a maior corporação do mundo para protegê-los? Como é possível que até hoje temos dúvida acerca de como fazer para pedir uma cautelar, uma vez que ela é concedida (ou não) ao alvedrio do juiz ou tribunal?
De novo: nada disso é gerado espontaneamente. Quando o primeiro professor entrou na sala de aula em 6 de outubro de 1988 e bradou coisas como: princípios são valores (algo como Deus morreu e agora pode tudo), começou o nosso declínio. Quando o primeiro professor de cursinho inventou o resumo do resumo e depois veio outro professor com resumão facilitadão e coisas do gênero, iniciamos a descida. Quando os concursos foram transformados em quiz shows, terceirizados pela OAB, Tribunais, Ministérios Públicos etc, e ninguém fez nada, a “conquista” começou. Quando a doutrina começou a fazer apenas glosas de julgados e o um Ministro disse “não me importa o que diz a doutrina”, comecei a estocar comida. Quando o primeiro advogado, humilhado, não reclamou da negativa de transcrição na ata do julgamento do ato autoritário do juiz, quando a doutrina ficou silente em face dos descumprimentos das leis e da Constituição e quando a comunidade jurídica se transformou em torcedora, admitindo quebra da legalidade por interesses próprios, o processo de “transformação” estava já de vento em popa. E quando o primeiro professor ensinou o ECA cantando Funk, o caos já se instalara. Finalmente, quando o professor abriu a palestra dizendo “sentença vem de sentire’ e foi aplaudido de pé, o declínio do império do direito já se instalara. Faltava só o que aconteceu no ano de 2016. E aconteceu. E olha que o ano ainda não terminou. Como diz Eraclio Zepeda: quando as águas da enchente cobrem a tudo e a todos, é porque de há muito já começou a chover na serra; nós é que não nos damos conta.
Numa palavra: Os pés das chinesas eram amarrados durante mais de mil anos. E de repente, em menos de vinte anos, acabou. O modo como estudamos e aplicamos o direito no Brasil, embora já tão consolidado, pode estar chegando ao seu estertor. Será que — lembrando O Código de Honra — se nos envergonharmos do que está ocorrendo, poderemos mudar esse quadro em alguns anos? Ou vamos ficar de pés atados, se me entendem a alegoria?
Feliz Natal a todos. Sem cartinha para o Papai Noel. E sem duelo. E com os pés sem ataduras. E sentindo vergonha.
[1] O “fator Mal-Afaia” já vem ocorrendo: os mesmos (MP e o PJ) que aplaudiram o voto do Min. Barroso no caso da presunção da inocência, não gostaram nem um pouco de suas posições no caso da PEC 55.
Lenio Luiz Streck é doutor em Direito (UFSC), pós-doutor em Direito (FDUL), professor titular da Unisinos e Unesa, membro catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional, ex-procurador de Justiça do Rio Grande do Sul e advogado.
Revista Consultor Jurídico, 22 de dezembro de 2016, 8h00