Antes que o STF decida o que deveria decidir

 

Sobre o caso da “prisão após o segundo grau” muito já se disse, muito ainda irá se dizer, mas falta dizer quem deveria já ter dito há muito, o STF.

Porque já muito dito por tantos, não irei repetir o que dito por esses outros, que são tantos que seria impossível catalogar tantas são as variadas formas de tratar desse assunto, tantas são as vertentes jurídicas, técnicas, ideológicas, humorísticas, gaiatas, mentirosas ou simplesmente cretinas.

Há um cardápio variado de opiniões, e tolices, sobre o tema. Sirvam-se, a internet é livre para todos, assim como as opiniões. No fundo, todas, até as tolices, tem serventia para a compreensão crítica do assunto. É a liberdade de expressão, de opinião, de crítica, de manifestação do pensamento tão bem agasalhada na Constituição, mas não tão bem tratada e considerada, infelizmente, pelo Poder Judiciário.

Certo é que o STF foi provocado em três ações diretas de inconstitucionalidade nas quais se pede a declaração de constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal (“ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.”) que, em resumo, diz que o cumprimento da prisão resultante de condenação criminal somente deve ocorrer com o trânsito em julgado, ou seja, quando não mais for possível interpor (dar entrada) num recurso.

Quem pensa diferente defende que a prisão deveria ser, ou deveria permanecer a ser, a partir da decisão do tribunal de segundo grau, ou tribunal de segunda instância, ou decisão de segunda instância.

Uma primeira observação que faço é que esse debate acerca da decisão de segunda instância é meio falacioso, pois se num determinado processo não houver recurso da condenação do juiz de primeira ou tribunal da segunda instâncias, haverá cumprimento da pena, pois terá ocorrido o trânsito em julgado da decisão. O segundo grau não é parâmetro seguro e uniforme para definir, para todos os casos, a partir de quando deve a pena-prisão ser cumprida.

A segunda observação é que também é falacioso o argumento de que depois do julgamento de segunda instância ou segundo grau não se discute mais fatos, ou seja, que o julgamento feito nos tribunais superiores não mais são analisados, julgados, debatidos os fatos do processo. Eu poderia nem ter feito essa segunda observação, pois é quase impossível se imaginar um processo sem fatos. Sem fatos não há processo e, por isso, estar-se-ia, no fundo, a dizer da desnecessidade dos tribunais superiores, já que não existiria processo para eles julgarem. A verdade: nos processos julgados pelos tribunais superiores fatos sempre há, pois sem eles não haveria os processos e, por conseguinte, não tem cabimento dizer que estes tribunais não decidem sobre fatos. Repita-se: sem fatos não há processo. Sem o caso concreto (os fatos da vida debatidos no processo) não há processo. Quando o processo vai para o STJ ou para o STF não se “fatia” o processo para excluir dele os fatos. Os ministros desses tribunais não usam uma lente especial que os impede de conhecer dos fatos.

Ainda sobre essa segunda observação, para não ir adiante, não custa lembrar que direito é historicidade, é faticidade, em suma, é narrativa DE FATOS.

O principal do que pretendo dizer é que pelo que até agora li e ouvi é que o debate se limita a dizer que o artigo 283 do Código de Processo Penal é constitucional ou não a partir do que está previsto nos incisos LVII e LXI do art. 5. da Constituição da República.

Digo que o debate é limitado não porque não concorde que esses dispositivos da Constituição da República atestam a constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal.

Com efeito, o inciso LVII diz que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” e, pelo que consta do preceito, alega-se que ele proíbe apenas que se considere culpado e não que se determine a prisão. Tal interpretação é o mesmo que se dizer que quem não é culpado deve ser preso mesmo assim. Há alguém que ache correto, justo, humano, legal, constitucional etc. prender, pôr na cadeia, quem não é culpado?

Mas o que quero dizer é que não é só isso, que há mais a dizer, a adicionar ao debate.

Antes que eu defenda a minha “tese” é necessário, primeiro, definir a questão principal do debate, a saber: segundo a Constituição da República é possível o cumprimento da pena-prisão antes do trânsito em julgado, ou é possível prender uma pessoa antes que o processo no qual ela foi condenada seja julgada pelos tribunais superiores, ou, para ser mais direto, prender (mandar para a cadeia) antes de julgamento definitivo?

Principio por dizer que concordo que o artigo 283 do Código de Processo Penal é constitucional a partir do que está dito nos incisos LVII e LXI do art. 5. da Constituição da República.

Todavia, acrescento que o artigo 283 do Código de Processo Penal é constitucional não somente em razão desses dois incisos do art. 5. da Constituição da República. Daí ouse falar em debate limitado.

Lá no primeiro ano de faculdade de direito (1992), na disciplina introdução ao estudo do direito, em doutrina de Miguel Reale (Lições Preliminares de Direito), li que “(…) nada mais errôneo do que, tão logo promulgada uma lei, pinçamos um de seus artigos para aplicá-lo isoladamente, sem nos darmos conta de seu papel ou função no contexto do diploma legislativo. Seria tão precipitado e ingênuo como dissertamos sobre uma lei, sem estudo de seus preceitos, baseando-nos apenas em sua ementa …”.

Também me foi apresentado a interpretação sistemática que, no meu dizer próprio, curto e rudimentar, quer dizer que um preceito não pode ser interpretado isoladamente sem consideração com o todo do sistema do ordenamento jurídico válido.

Depois aprendi e apreendi com Eros Grau que “Ademais, não se interpreta a Constituição em tiras, aos pedaços. Tenho insistido em que a interpretação do direito é interpretação do direito, não de textos isolados, desprendidos do direito. Não se interpreta textos de direito, isoladamente, mas sim o direito — a Constituição — no seu todo.” (ADI 3.685-8/DF).

Em o Avesso das coisas: aforismos, Carlos Drummond de Andrade, diz que “cada um lê na Bíblia o versículo de lhe convém”. Esta máxima, ou mínima como chama o poeta, é que não se pode usar.

Paro por aqui para evitar adentrar em teorias acerca de hermenêutica da vida e do direito e perder a linha do tempo do dizer do texto a que me pretendo.

Vamos à questão principal: prender (mandar para a cadeia) antes do julgamento definitivo é compatível com a Constituição da República?

Ainda antes de apontar os outros preceitos constitucionais que vedam a prisão antecipada ou provisória (prisão antes do julgamento definitivo), e para que se faça a devida leitura do que vou expressar adiante, digo que no processo civil brasileiro é possível cumprir a decisão condenatória antecipada ou provisoriamente, mas somente isso é possível quando o cumprimento não se tornar irreversível ou o beneficiário do cumprimento assegurar a contracautela. No processo penal, no caso de prisão-pena antecipada, não há contracautela, não há como reverter os efeitos da prisão, não há como devolver a liberdade cerceada pela prisão-pena antecipada, não como devolver a dignidade, o bom nome, o convívio com a família etc. Enfim, não há como assegurar ou devolver nada.

Adiante.

Para além do que já dito – do que não pode a partir do dito nos incisos LVII e LXI do art. 5. da Constituição da República. –, e sem a pretensão de que citarei todas as hipóteses, acrescento não ser possível a prisão antes do julgamento definitivo pelas seguintes “razões constitucionais”:

i) ser incompatível com o Preâmbulo da Constituição da República porque o Brasil é um (…) um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, (…), a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, (…) e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, (…)”;

ii) ser incompatível com os fundamentos da República cidadania e dignidade da pessoa humana ( 1., II e III);

iii) ser incompatível com os objetivos fundamentais da República sociedade livre, justa e solidária, erradicar a marginalização e promover o bem de todos sem quaisquer formas de discriminação (art. 3., I, III e IV);

iv) ser incompatível com os direitos e garantias fundamentais inviolabilidade do direito à liberdade e à segurança, ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante, direito de indenização por dano material, moral, à imagem, intimidade, vida privada e honra proporcional ao agravo, direito de livre locomoção no território nacional, direito de reunião, garantia de usufruir da propriedade, direito de não se submeter a pena cruel, direito ao devido processo legal e ampla defesa, direito à liberdade provisória ( 5., caput, II, III, V, X, XV, XVI, XXII, XLVII, “e”, LIV, LV, LXVI);

v) ser incompatível com os direitos sociais educação, a saúde, a alimentação, o trabalho (e todos os direitos dele decorrente), o lazer, a segurança, proteção à maternidade e à infância acompanhada de seus pais ( 6., caput);

vi) ser incompatível com os direitos da família, base da sociedade, que tem como dever assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão e direito-dever de amparo e cuidar dos idosos ( 226, caput, 227, caput, 229, caput e 230, caput).

Para dizer ou concluir que privar uma pessoa da liberdade, em razão de uma condenação criminal que depois venha a se tornar indevida, viola os preceitos acima da Constituição da República, basta que se faça uma simples indagação a partir do que contido em cada preceito, por exemplo: a prisão-pena de uma pessoa, depois reconhecida indevida, é ato digno dum Estado Democrático? Não atenta contra a liberdade, contra a segurança, contra a justiça e contra uma sociedade fraterna? Não atenta contra a cidadania da pessoa e a dignidade da pessoa humana? É ato justo, solidário, não marginaliza, não promove a discriminação da pessoa? Não obriga a pessoa a fazer o que não estar na lei? Não é uma espécie de tortura? Não é um tratamento desumano e degradante? Não é uma pena cruel? Não priva a pessoa de educação, de saúde física e mental, de lazer e da convivência com a família?

Poder-se-ia alegar: mas a Constituição da República diz, no inciso LXXV do art. 5. que “o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença”. Primeiro, que tenho certeza que nem o maior materialista trocaria todos esses direitos por uma prisão indevida e, segundo, que até mesmo o fato desse preceito existir na Constituição da República é para os casos de prisão definitiva, transitada em julgado, pois, para as indevidamente antecipadas, o constituinte originário não quis nem cogitar por ser antitética do que contido no texto constitucional.

No caso da prisão-pena a partir do julgamento da segunda instância, eu ainda me repetiria ao reproduzir o que já disse noutro momentos, v. g., a regra da civilidade é que todos são “supostamente inocentes” e, dizer o contrário, é um rompimento unilateral com os fundamentos, no caso, da Constituição da República etc.

Por estas outras razões, digo, o STF deveria dizer, que o artigo 283 do Código de Processo Penal é constitucional.

Não se pode ignorar que se evoca a favor da pena-prisão após o julgamento da segunda instância o clamor da opinião pública contra a impunidade. Isso me faz lembrar Vicent Moro Giaferri que, em resposta a Cesar Campinchi, que invocava a opinião pública em seu favor, disse: “Maître Campinchi vos dizia a toda hora que a opinião pública estava sentada entre vós, deliberando a vosso lado. Sim! A opinião pública está entre vós. Expulsai-a, essa intrusa. É ela que ao pé da cruz gritava: ‘Crucifica-o’. Ela, com um gesto de mão, imolava o gladiador agonizante na arena. É ela que aplaudia aos autos da fé da Espanha, como ao suplício de Calas. É ela enfim que desonrou a Revolução francesa pelos massacres de setembro, quando a farândola ignóbil acompanhava a rainha ao pé do cadafalso. (…)”.

E, antes que STF decida o que deveria decidir, segundo o que interpreto da Constituição da República, é o que tenho a manifestar.

1 comentário em “Antes que o STF decida o que deveria decidir”

Vandilma P Coutinho | em: 06/11/2019 às 19:30

Muito sensato. Dr Marcos Lobo sempre com muito zelo para com a Constituição 👏👏👏

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