E o STF salvou a Lavajato

Durante as duas últimas semanas o STF decidiu que o réu delatado deve se manifestar, nas alegações finais, depois do réu delator.

Deveria ter dito mais, ou seja, de que o réu delatado, do início até o fim do processo, sempre e imprescindivelmente, tem o direito de falar por último.

Não vou aqui ensinar o que todos já sabem faz séculos: o delator acusa o delatado e, como regra universal de civilidade, a defesa do acusado sempre vem depois da acusação.

Isso, o acusado falar depois (por último), não é invenção do STF, pois é construção de milênios da existência da humanidade (para maiores esclarecimentos consultem a Carta Magna inglesa, a Declaração Universal dos Direito do Homem, Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, as declarações americanas – Virgínia e da independência -, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, o Pacto de San Jose da Costa Rica – Convenção Americana sobre Direitos Humanos –, e tantos outros pactos, declarações e convenções internacionais).

É possível mesmo dizer que isso já era previsto nas primeiras “leis”, por exemplo, no Código de Hamurabi etc.

Quiçá, isso, o direito de falar depois, é derivado do que o homo sapiens colheu da natureza ou, na pior das hipóteses, é uma “realidade imaginada” concebida pelo homo sapiens a partir da revolução cognitiva (para maiores esclarecimentos consultem Yuval Noah Harari – Sapiens: Uma breve história da humanidade, Homo Deus – Uma breve história do amanhã e 21 Lições para o Século 21).

Aliás, aqui prá nós, isso é regra doméstica, cotidiana, própria da natureza, e – para usar uma linguagem mais técnica – da dialética, de que a defesa vem sempre depois da acusação. Tese e antítese, dizer e desdizer etc.

Em suma, o acusado, o delatado, o réu, a antítese, o desdizer etc. somente existe a partir e em razão do outro antecedente (o acusador, o delator, a autor, a tese, o dizer etc.). Um é condição sem a qual o outro não existe, ou melhor, o que vem depois não tem razão de existir (suponho que inexistirá) se o antecede não se apresentar. Um é matéria prima, a substancia primordial, do outro.

E já pararam para pensar nas “leis da natureza”? Vamos lembrar um pouco da física? Ação e reação (duas forças, sentidos contrários etc.), por exemplo? A reação, como se sabe, precisa que primeiro aja uma ação. Custa nada dar uma relida nas Leis de Newton (o Isaac).

Numa pergunta simples: o que vem antes, a pergunta ou a resposta? Há respostas sem perguntas? Ou seja, o normal é que o desdizer vem sempre depois do dizer. Já ouviram falar em contraditório? Reflitam sobre a palavra contradizer.

E vós, os religiosos, não esqueçam de lembrar o que já leram, ou deveriam ter lido, nos seus livros sagrados. Os cristãos, a quem estou mais familiarizado, bem sabem que de genesis a apocalipse o acusar, defender e julgar sempre sequem essa linha do tempo do dizer.

Até os seres não sapiens, os não nós, compreendem isso: sabe, a gazela que foge do leão? Ação e reação. Ataque e defesa.

Bem, acho que já me fiz compreender, ou, para ser bem claro para o tema do texto, o STF não inventou ou criou absolutamente nada, pois tudo isso já estava aí desde sempre.

Um ponto final nessa parte: o STF disse apenas e tão-somente o óbvio.

O que se tem, portanto, ao reverso do que o acusam, é que o STF, lá com o seu jeitão desajeitado, salvou a Lavajato.

A acusação contra o STF é que na lei que criou a delação não há previsão de que a defesa do delatado se manifeste após a do delator, que também o Código de Processo Penal não prevê isso etc. e que o STF criou uma regra onde não existia.

Esta tese de acusação contra o STF, se aplicada conforme as regras do jogo, ensejaria o inverso do que ela prega, pois se a lei da delação não contempla o direito de ampla defesa e contraditório (o direito do acusado de falar por último), direitos estes previstos na Constituição, a lei da deleção seria inconstitucional e, por isso, sem validade, a provocar a declaração de inconstitucionalidade da lei e, por conseguinte, a declaração de nulidade de todas as delações e, como se sabe, as delações foram e ainda são a única substância que dar vida à Lavajato.

Sem a delação inexistiria a Lavajato.

Mas aí aparece o STF, com aquele jeitão de falar que ninguém entende, e diz: a lei tem validade, desde que observado e cumprido o que diz a Constituição, que se aplique à delação a ampla defesa e o contraditório (o direito do acusado de falar por último). O STF, digamos que em silêncio, aplicou à lei da delação uma “interpretação conforme a Constituição”, ou aplicou a “nulidade parcial sem redução de texto”, ou apenas fez incidir sobre a lei os princípios constitucionais, aqueles tais da ampla defesa e do contraditório.

Ao assim proceder o STF salvou a lei da delação e, com isso, salvou a Lavajato, porquanto, tivesse pura e simplesmente confrontado a lei da delação com a Constituição, esta iria prevalecer e declarada inconstitucional aquela, a resultar nulos todos os processos da Lavajato.

O STF, portanto, lavou, a jato, as impurezas da lei da delação quando fez incidir os desinfetantes ampla defesa e contraditório, a deixar limpinha a lei para alegria de todos da Lavajato e da platéia.

Alguém poderia imaginar que estou a defender o STF e logo respondo que não, pois o que pretendo é repreendê-lo por demorar tanto tempo para dizer uma obviedade e, por isso, erra como nunca poderia ter errado tão gravemente ao não dizer que nenhuma lei ou ninguém ou desejo está acima da Constituição, afinal ele, o STF, é o seu guardião.

É como diz o nome de um programa de televisão da Universal do Reino de Deus: “Fala que eu te escuto” e, eu adiciono, e te respondo, ou seja, as respostas (as defesas) vem sempre depois da perguntas (das acusações).

Querer mais ou simplesmente não aceitar isso é imaginar o aparecer do desdizer antes do dito e isso não é nem uma “realidade imaginada” é apenas uma mentira.

Daí porque dizer que quando o STF disse que também na lei da delação o desdizer vem depois do dito ele apenas disse o óbvio para, acreditem, salvar a Lavajato.

É o que digo: o STF salvou a Lavajato.

3 comentários em “E o STF salvou a Lavajato”

Tito | em: 04/10/2019 às 20:54

Desdizer é “conditio sine qua non”, inexorável axioma ao qualquer conduta azorragada. Por primevo estado – instinto natural, aquilatado pela sapiência em conflagrado senso de justiça. Trata-se de beligerar frente ao despotismo, tirania e congêneres. Sem dúvida exitosa resolução frente ao espirito constitucional. Cognoscente parecer.

    Administrador Administrador | em: 04/10/2019 às 23:45

    Obrigado pelo comentário. Seja bem vindo ao por mim.

Luiz carlos | em: 06/10/2019 às 16:29

Não podemos esquecer que o direito ao contraditório tem que se estender a todos, a de se lembrar que no referido assunto, todos são réus, tomamos por exemplo se o delatado acusar o delator nas suas alegações finais e assim sucessivamente? Como chegaremos ao final dessa celeuma? Com essa decisão o STF nos pôs numa infinita discursão como no jargão popular que fala-se; quem nasceu primeiro? O ovo ou a galinha?

Deixar um comentário

HTML tags:
<a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <s> <strike> <strong>