TSE, por um triz, quase erra feio

SENSO INCOMUM

O julgamento no TSE: pedindo licença para uma análise jurídica

15 de junho de 2017, 8h00

Por Lenio Luiz Streck e Eduardo José da Fonseca Costa

Qual a importância de um texto legal? Qual a importância da Constituição? O que vale mais: o texto legal ou a opinião pessoal do intérprete? Poder-se-ia apontar aqui vários casos em que a vontade do juiz ou do representante do Ministério Público valeu mais do que o texto legislado. Não que o texto tenha valor em si. Mas ele deve ter algum valor. Pois não? A menos que se lhe decrete a inconstitucionalidade, ou que seja ele contornado por outras cinco possibilidades (ver aqui).

Elegemos aqui o artigo 23 da LC 64/1990 (a chamada “Lei de Inexigibilidades”), objeto de grandes debates e controvérsias por ocasião do julgamento no TSE da chapa Dilma-Temer. O ministro relator do caso disse insistentemente que, embora tivesse invocado o artigo 23, jamais lançou mão dele na prática. Todavia, sua manifestação demonstra justamente o contrário: Sua Excelência incorreu naquilo que analíticos como John L. Austin chamam de contradição performativa, isto é, uma contradição entre o que se afirma num ato linguístico e o “saber do agir” implícito na realização desse ato. Ou seja, a letra fria do dispositivo indica a possibilidade de livre valoração das provas pelo juiz, o relator afirma que não o aplicou, mas em verdade ele escolheu unilateralmente a maneira de valorá-las. Genial, não?

Vamos ao tão propalado artigo 23 da Lei de Inexigibilidades (pedimos que leiam despacito):

“O Tribunal formará sua convicção pela livre apreciação dos fatos públicos e notórios, dos indícios e presunções e prova produzida, atentando para circunstâncias ou fatos, ainda que não indicados ou alegados pelas partes, mas que preservem o interesse público de lisura eleitoral”.

De plano já se percebem os graves problemas que tornam dispositivo tão perigoso.

Em primeiro lugar, ele colide com o artigo 371 do CPC-2015 (“O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento”). Esse dispositivo ocupa hoje o lugar outrora preenchido pelo artigo 131 do CPC revogado, que assim dispunha: “O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na decisão, os motivos que lhe formaram o convencimento”. Como se vê, o termo “livremente” foi suprimido do sistema de Direito Processual Positivo, razão pela qual não existe mais espaço para a chamada “livre apreciação da prova”: é preciso que no plano dogmático sejam desenvolvidos critérios racionais de valoração probatória objetivamente controláveis pelas partes, sob pena de haver razões de decidir pairando dentro da consciência indevassável do juiz (obs.: o projeto do CPC veio do Senado com a simples repetição do artigo 131 do CPC-1973; por emenda de um dos autores do presente texto, alterou-se a redação, cuja justificativa se pode ver na coluna aqui na ConJur).

Na verdade, a proibição do chamado “livre convencimento motivado” é daquelas garantias processuais que decorreriam de uma interpretação constitucional, embora só agora apareçam explicitadas no sistema processual civil positivo vigente. Exemplos crassos são (1) a vedação da decisão-surpresa (CPC, artigo 10) (extraível do artigo 5º, LIV e LV, da CF) e (2) a necessidade de ampla fundamentação (CPC, artigo 489, parágrafo 1º) (retirável do artigo 93, X, da CF). A propósito, um dos autores do presente texto já escreveu sobre isso aqui na ConJur por duas vezes (aqui e aqui). Foram também citados Rui Espindola (ler aqui) e Alexandre de Castro Nogueira, com seu livro Decisão Judicial na Justiça Eleitoral, da Editora Juruá (p.204), cuja leitura se recomenda. Ainda, Leonardo Carneiro da Cunha (leia aqui).

Poder-se-ia argumentar que o artigo 23 da LC 64/1990 traz uma regra especial anterior e o artigo 371 do CPC/2015 uma regra geral posterior; nesse caso, não haveria revogação: lex posteriori generalis non derogat priori especiali. No entanto, não se pode olvidar a regra do artigo 15 do CPC atual: “Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente”. Note-se que a aplicação do CPC/2015 ao processo eleitoral se faz de modo tanto subsidiário (i.e., em caso de lacunas da lei processual eleitoral) quanto supletivo (i.e., de forma complementar). Portanto, o juiz eleitoral não está isento de explicitar em sua decisão a criteriologia racional com base na qual valorou as provas e de, com isso, permitir que as partes impugnem objetivamente a valoração realizada.

É bem verdade que o TSE editou a Resolução 23.478/2016, que “estabelece diretrizes gerais para a aplicação da Lei nº 13.105 de 2015 – Novo Código de Processo Civil – no âmbito da Justiça Eleitoral”. Nela está prescrito no parágrafo único ao artigo 2º que “a aplicação das regras do Novo Código de Processo Civil tem caráter supletivo e subsidiário em relação aos feitos que tramitam na Justiça Eleitoral, desde que haja compatibilidade sistêmica” (d. n.). Contudo, abstraindo-se a (i)legitimidade da ressalva, não se divisa qualquer particularidade que torne o âmbito processual eleitoral “quimicamente dependente” do chamado “princípio do livre convencimento motivado”.

Ademais, poder-se-ia também argumentar que a regra do artigo 23 da LC 64/1990 é hierarquicamente superior à regra do artigo 371 do CPC/2015, razão por que também não haveria revogação: lex inferiori non derogat legi superiori. No entanto, nada impede a aludida revogação. O parágrafo 9º do artigo 14 da CF-1988 (com a redação dada pela Emenda de Revisão 04/1994) exige edição de lei complementar federal apenas para o estabelecimento de outros casos de inelegibilidade não previstos no texto constitucional:

§ 9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.

Para que se estabeleçam regras de Direito Processual Eleitoral, basta que se edite lei ordinária federal (CF/1988, artigo 22, I). Assim, o artigo 23 da LC 64/1990 é expressão de um “excesso de forma legislativa”, pois deveria constar de texto de lei ordinária, não de lei complementar. Ou seja, o sapateiro foi muito além das chinelas. Daí por que a doutrina sempre alertou que, “quando a lei complementar extravasa o seu âmbito de validez, para disciplinar matéria de competência da lei ordinária da União, é substancialmente lei ordinária” (BORGES, José Souto Maior. Eficácia e hierarquia da lei complementar. Revista de Direito Público 25, p. 98). No mesmo sentido: ATALIBA, Geraldo. Lei complementar na Constituição. São Paulo: RT, p. 35-36. Esse entendimento, aliás, já fora consagrado no STF desde o julgamento da ADC 01-DF, cujos autos foram relatados pelo ministro Moreira Alves.

Uma vez admitida a aplicação do artigo 331 do CPC/2015 ao processo eleitoral, chega-se a outra conclusão: suprimiu-se do sistema a possibilidade inquisitiva de o juiz atentar “a atos e circunstâncias constantes dos autos não indicados ou alegados pelas partes”. Ou seja, ao objeto do processo só são aportadas as questões fáticas levantadas pelas partes, sem que nessa matéria o juiz possa ampliá-lo. É bem verdade que o artigo 23 da LC 64/1990 obriga o tribunal a atentar oficiosamente “para circunstâncias ou fatos, ainda que não indicados ou alegados pelas partes”, desde “que preservem o interesse público de lisura eleitoral” (d. n.). Lembre-se que, na Justiça Eleitoral, para além de interesses egoísticos, tutela-se primordialmente uma macroinstituição chamada “lisura das eleições”, pilar central da democracia representativa, que se fragmenta em microinstituições como “isonomia entre os candidatos”, “moralidade das eleições” e “proteção da vontade do eleitor” (obs.: instituições nada mais são do que entidades [e.g., organizações públicas, escolas, museus], bens [e.g., patrimônios histórico e artístico, meio ambiente], relações [e.g., família, casamento], valores [e.g., fé pública, veracidade da propaganda, lealdade concorrencial, moralidade administrativa], agrupamentos [p. ex., comunidades tradicionais], hábitos [e.g., tradições, festas, costumes], utilidades [e.g., saúde, esporte, segurança, educação] e normas [e.g., lei, Constituição], cuja preservação estrutural e cujo bom funcionamento são indispensáveis à identidade e à própria existência de uma determinada sociedade e ao bem-estar de seus cidadãos). Nesse sentido, o processo eleitoral caracteriza-se não só por uma forte nota de supraindividualidade, mas de supragrupalidade (afinal, não diz respeito a um grupo ou uma coletividade específica, mas a toda a sociedade). Todavia, a tutela do chamado “interesse público de lisura eleitoral” nada mais é do que a tutela de um direito subjetivo difuso, que é “direito subjetivo sob titularidade indeterminada” ou “não subjetivado”, cuja satisfação em juízo só se pode fazer a requerimento de quem tem legitimidade ativa para tanto: o MP (CF, artigo 129, III). Portanto, o artigo 23 da Lei de Inexigibilidades cria uma usurpação funcional, pois imputa à autoridade judicial atribuição típica do Ministério Público Eleitoral. Pior: arranca o “im” da imparcialidade [= imparcialidade = não atuar como parte = ser funcionalmente neutro], atirando o juiz no mesmo patamar daqueles que se interessam ex ante pelo desfecho que será dado à causa. Em suma, o juiz se torna um “promotor eleitoral fantasiado com toga”.

É cediço que o STF julgou o dispositivo constitucional (ADI 1.082/DF, rel. min. Marco Aurélio). O STF errou. Mas é sabido também que há decisões (como a que relatada aqui) que assustam a comunidade jurídica e que se repetem nos quatro cantos do país. Como se não fossem o suficiente, sobrevém o caso da chapa Dilma-Temer, em que o TSE quase abre perigoso precedente, por força do qual os processos jamais teriam fim, reforçando temerariamente o inquisitivismo judicial na Justiça Eleitoral. É a isto que a comunidade jurídica não dá a devida importância, talvez porque a doutrina se comporte como profeta do passado: apenas descreve o que a jurisprudência diz e a isso não se opõe. Por isso, em vez de “torcer” pela cassação da chapa, a comunidade jurídica deveria pensar no que isso representa(ria) em termos de direitos (d)e garantias processuais.

O artigo 23 é um jabuti posto na legislação eleitoral. Afinal, qual a razão de a prova em matéria eleitoral ser mais “flexível” e menos exigente em termos garantísticos do que as demais áreas?

Portanto, das duas uma: ou se aplica o CPC como forma de trazer garantias efetivas aos contendores no processo eleitoral (com respeito pleno aos ditames constitucionais), ou não se aplica. Tertium non datur. Mas, neste caso, também não se pode aplicar “as partes boas”, por assim dizer, como o poder de o relator (artigo 932) resolver monocraticamente os recursos. Ou a aplicação é em um todo coerente e íntegro (CPC, artigo 926), ou não se poderá fazê-lo ad hoc.

Atenção: não parece paradoxal que, para a discussão acerca de uma nota promissória ou uma cláusula de um contrato de leasing se tenha a garantia da não surpresa, com o reforço dos artigos 371, 489, 026 e 927, e, ao mesmo tempo, mantenhamos o poder de julgamento por livre apreciação de prova e por presunções justamente na atividade mais importantes de uma democracia: uma eleição? Para dirimir um problema de divisão de um terreno, todas as garantias de contraditório etc.; já para o processo eleitoral, a possibilidade de a parte ser surpreendida e até mesmo de o juiz julgar por coisas que só ele percebeu, a partir da sua intuição ou algo correlato… Afinal, o que é uma presunção? Como aferir isso? Se o poder emana do povo, não tem de se dar mais valor ao voto popular do que às presunções pessoais?

É por tais razões que questionamos a validade do artigo 23 da LC 64. A OAB (já que, por óbvias razões, o MP nada fará) deve urgentemente discutir a constitucionalidade e/ou incompatibilidade com os artigos 10 e 371 do novo CPC. A comunidade jurídica e os tribunais devem se preocupar com isso. Não podemos tratar esse assunto de forma emotivista. As palavras da lei importam e é por isso que devemos nos importar com tudo isso, para imitar uma frase de E.P. Thompson.

Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados:www.streckadvogados.com.br.

Eduardo José da Fonseca Costa é juiz federal, doutor em Direito (PUC-SP), pós-doutorando pela Unisinos e presidente da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro).

Revista Consultor Jurídico, 15 de junho de 2017, 8h00

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