“matar dois leões é fácil. Difícil é desviar das antas. Ou conviver com as cobras”

SENSO INCOMUM

Jurista Nutella não consegue interpretar textos e não entende ironias

16 de fevereiro de 2017, 8h00

Por Lenio Luiz Streck

Subtese da coluna: “O Vesúvio em erupção e o jurista ajeitando o quadro de Van Gogh na parede” ou “a constitucionalização da vaquejada como o maior fiasco jurídico da República ou Janaína Paschoal armada e perigosa ou “estoque alimentos — o caos é inexorável”.

Esclarecimento inicial: chamo de jurista toda pessoa ligada à profissão jurídica. A coluna da semana passada bateu recordes de acesso. No ranking fechado na sexta-feira (10/2, já havia mais de 87 mil. Penso que até hoje deve ter batido a casa dos 90 mil, que, somados a outras formas de acesso, passou fácil de 100 mil. Alegra-me isso.

Foi uma coluna recheada de ironias e sarcasmos. O título confundiu muita gente boa por aí. Os que não leram toda a matéria saíram me criticando. Outros saíram elogiando. Quando leram a coluna toda, trocaram de lado. Bizarro. Como diz Bauman, com o nosso culto à satisfação imediata, muitos de nós perdemos a capacidade de esperar.

Vivemos tempos duros. Obscuros. Direito fragilizado, fragmentação na aplicação, descompromissos com as instituições e extremo individualismo, pelo qual o sujeito (intérprete do Direito, para ficar nos limites propostos) acredita que pode filtrar o Direito — visto como expressão de uma linguagem pública — por sua linguagem particular: a dele, é claro! Eis o solipsismo. Eis o Selbstsüchtiger, o sujeito egoísta moderno, sujeito-de-si-de-sua-certeza-pensante. O externo não consegue constranger a barbárie interior desse sujeito. Resultado: cada um por si. A corrida é pelo poder. Um dos modos de se perceber isso é o niilismo que perpassa o Direito e as instituições. Não há mais nada que possa ser universal ou que tenha objetividade: só existem narrativas. Eis a tal da pós-verdade.

Bom, a coluna é para ser bem curtinha. Já estou usando palavras que parcela da comunidade jurídica não digere. E se irrita. A anterior  a dos 100 mil  provocou comentários que vão do genial ao absurdo. E mostra que, de fato, tenho razão quando denuncio  como faço há décadas  os malefícios do ensino standard prêt-à porter, prêt-à-penser e prêt-à-parler (já compliquei de novo). Não leia mais nada. Quem gosta de drops para por aqui. E sai gritando: na prática, a teoria é outra.

Sigo. Parece que as críticas caem no vazio. O Direito é um mundo de ficção. O país está ardendo e: a) mata-se mais do que na guerra da Síria; b) Judiciário censura jornal; c) juiz proíbe que advogado grave audiência (mas ao mesmo tempo divulga conversas privadas entre dois ex-presidentes da República); d) parte dos críticos vibraram com decisão que impediu Moreira Franco de assumir um ministério (na sequência, ministro do Supremo Tribunal Federal decide certo em manter Moreira… Só que o STF fez o contrário quando se tratou da nomeação de Lula, sendo que, à época, nenhum outro ministro pediu para que o caso fosse levado a Plenário: dois pesos, duas medidas); e) discute-se se furto de chiclete é insignificância; f) ministra dos Direitos Humanos se nega a falar sobre o sistema carcerário (afinal, o que uma coisa tem a ver com a outra?); g) aprovada em primeiro turno PEC da vaquejada; h) Romero Jucá faz manobra para antecipar sabatina de indicado ao STF…; i) juiz encarregado da “lava jato” no Rio de Janeiro, quando assumiu a vara, tirou uma Bíblia do bolso e disse: “Este é o principal livro desta vara!” (e eu acreditando que o principal livro era a CF).

Ao mesmo tempo, vejo no Facebook coisas como: a) a protagonista do impeachment, Janaína Paschoal, defendendo o armamento das mulheres (fico imaginando a Janaína armada com dois Colts 45, dizendo I’ll be back — Janaína para ministra da Justiça, a solução definitiva; pergunto: como o porte ilegal de arma é proibido, estaria Janaína fazendo incitação ao crime? — ironia!); b) um professor ministrando curso chamado “cozinhando legal”; c) outro post falando de editora que vende 544 modelos de petições iniciais em matéria criminal, 197 modelos de petições cíveis, 763 modelos de petições previdenciárias (porque esses números quebrados?); d) outro professor vendendo curso de “como funciona nossa memória para concurso”. Genial, não? Concurso é para decoreba. Confessadamente; e) já outro vende curso de audiência de prática judiciária on-line. Tudo isso está no “feicibuki”. Na ConJur, a AGU fala já de robôs-advogados, ou seria advogados-robôs? f) tem também gente oferecendo coaching com certificado em inglês; g) outros oferecem cursinhos com “pessoas reais” ministrando aulas. Sucesso ao alcance de sua mão… Em 1990, em palestra no Rio, eu disse a seguinte frase (tenho gravada): “O Vesúvio em erupção e o jurista ajeitando o quadro de Van Gogh na parede”. Já ali avisava.

Tem mais: vi também que agora o aluno não mais precisa ir assistir a audiências ou julgamentos (acho que alguém vai propor uma PEC tratando disso; atenção: sarcasmo!). Pode fazer isso on-line. Há um festejado dispositivo que está no Facebook que resolve o problema da malta. Em Pindorama, logo ensinarão natação oral. Por que você necessita saber nadar, se pode fazer natação on-line? EAD em natação! Por que ler um livro se você pode ler o resumo do resumo vendido aos incautos patuleus que depois não conseguem saber o que é uma ironia ou uma metáfora? Pronto: uma PEC dispensando todos de ler o livro todo. Chamar-se-á de PEC da Orelha. Viva a terceirização epistêmica.

Eis o que liga o que disse acima com a coluna passada. Vou trazer alguns excertos de comentários que simbolizam o estado da arte do senso comum teórico que há décadas corrói o ensino, a doutrina e as práticas jurídicas. Produzimos alunos e profissionais que dizem coisas como estas das quais falarei rapidamente: um comentário à coluna que me chamou especialmente a atenção foi de uma causídica, que já no título mostrava a que veio: “Pela primeira vez vejo contradição no Prof. Lênio”. Disse que ficou triste porque eu estava apoiando a indicação ao STF. Pois é. Já um comentarista que se assina “Professor” dá o título contundente a partir de uma frase minha: “e daí se muitos no STF fazem isso também”! Para o professor, por eu ter dito isso (deve ter lido só essa frase), ele “ficou de boca aberta”. E disse mais algumas coisas que apenas mostra como nossa massa jurídica não sabe interpretar, não sabe o que é uma metáfora ou uma ironia. Poderia ser usado como case para o vestibular.

Há outros comentários à coluna que são (também) de chorar (chorar, aqui, é metafórico). Alguns, repletos de raiva, resumem tudo o que eu disse em dois ou três impropérios. Que pena. Um leitor mostrou-se funcionalmente apedeuta, ao dizer que “usei tom conciliador mal dissimulado” na coluna. Inacreditável. Uma comentarista disse que eu falara mal dos concurseiros e “menoscabava os candidatos”, no que foi apoiada vibrantemente por outro, que acrescentou uma pérola: as palavras difíceis (“nomenclaturas eruditas”) e baboseiras (sic) que pedem nos concursos (sic) são culpa de gente como o articulista (eu). Bingo. Já outro disse que o indicado ao STF deve ser ministro para enfrentar os comunistas da PUC-SP e outros vermelhos (claro: e a culpa é minha também). Um promotor se esmerou, resumindo todo o meu texto ao fato de eu tê-lo escrito por ter dor de cotovelo. Binguíssimo. O AM (Auxílio Moradia) lhe subiu à cabeça. Comentário erudito, como o postado pelo “assessor”, que diz que ninguém se importa com Alexy, Dworkin e Luhmann. Tudo dito com a profundidade dos calcanhares de uma formiga anã. Mas esse é o imaginário jurídico construído em Pindorama. Com muito esforço. Um Direito Nutella. Sim, esse é, verdadeiramente, o Direito Nutella!

Tudo isso mostra a falta que faz a leitura. Aos alunos e demais juristas que não conseguem entender minimamente o que diz um texto e àqueles que não conseguem entender minimamente ironias, metáforas e sarcasmos, sugiro mergulharem nos livros (cuidado: isto tem um sentido metafórico — não mergulhe de verdade; há livros com capa dura que podem causar ferimentos). Chegar no coração do problema não quer dizer que o problema tenha coração. Livros não mordem (até porque não têm dentes — compreenderam? Aqui temos uma catacrese). Para ser um bom jurista e não ser um fabricante de próteses para fantasmas (isto também tem um sentido metafórico — fantasmas não sofrem amputações), há que matar dois leões por dia (ups: também tem um sentido metafórico — por favor, não matem os leões). Diz-se até que matar dois leões é fácil. Difícil é desviar das antas. Ou conviver com as cobras.

Brava gente pindoramense: o que foi feito com o Direito (sim, porque ninguém é filho de chocadeira e não existe grau zero de sentido) e o que foi feito deste país? O que fizeram com os alunos?

Atenção: ironia é dizer sutilmente o contrário do que parece que se está dizendo. A coluna dos 100 mil tinha essa intenção ao falar sobre a dogmática jurídica, seus produtos e produtores. Mas isso só se aprende lendo muito. Não há intelectual bronzeado (isto, no caso, deve ser lido como uma espécie de sinédoque, variação de metonímia). Enfim: palavras e coisas… A palavra “água” não molha, viu? (mais uma catacrese?). Tenho a certeza de que aqueles comentaristas que só conseguem comentar as colunas destilando veneno ficarão em palpos (ou em papos) de aranha (atenção: destilar veneno não é, exatamente, destilação de veneno; e palpos de aranha não tem aranha de verdade envolvida).

Definitivamente, vou estocar comida (estocar, neste caso, não tem o sentido de juntar, guardar alimentos). Significa que… É isso mesmo que você está pensando. Ou não!

Post scriptum: antes que alguém diga que estou reduzindo o problema do Direito a uma caricaturização do imaginário, informo que não desconheço o intenso trabalho de parcela dos juristas (advogados, professores, juízes e membros do Ministério Público) que buscam construir, dia a dia, um Direito para além do que vemos por aí. O que quero mostrar é o buraco em que nos metemos: não conseguimos sequer identificar (e fazer cumprir) o mais prosaico: o Direito. Entre ele e a moral (e/ou a política), temos preferido esta. Resultado: Direito é o que quem tem poder de dizê-lo é. Simples assim.

Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados:www.streckadvogados.com.br.

Revista Consultor Jurídico, 16 de fevereiro de 2017, 8h00

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