Moro é um tarado pelo arbítrio

LIMITE PENAL

Prisão preventiva está para além de gostarmos ou não de Eduardo Cunha

28 de outubro de 2016, 8h01

Por Aury Lopes Jr

Me perdoem os milhares de eleitores de Eduardo Cunha, mas nós não nutrimos nenhuma simpatia por ele ou pelo que representa politicamente. A opinião pública e o julgamento político também podem condená-lo. Mas o Processo Penal e seus institutos não operam nessa lógica.

Mas Processo Penal não é uma valoração de simpatia ou antipatia, moralista. Processo penal é um ritual de exercício de poder e, como todo poder, precisa ser condicionado e legitimado pela estrita, observância da principiologia cautelar e das regras da prisão preventiva. É sob essa ótica que a questão precisa ser enfrentada, como veremos agora.

Após uma leitura detida da decisão (de 27 páginas) a primeira conclusão que salta aos olhos é: já está afirmada a autoria e a materialidade. Existe uma longa e completa fundamentação sobre todo o caso penal, manutenção de depósito ilegal no exterior, corrupção, etc. Uma fundamentação de qualidade e digna de uma boa sentença. O problema é que não se trata de uma sentença…mas de uma medida cautelar, baseada apenas em probabilidade, verossimilhança.

Ainda que a decisão invoque — cosmeticamente — que se trata de um juízo em sede de cognição sumária, a realidade é que existe ampla (e indevida) incursão no mérito. É evidente o prejuízo decorrente do pré-juízo. Eduardo Cunha já está condenado. A certa altura, a decisão chega até mesmo a afastar possíveis teses defensivas, quando afirma, por exemplo, que “em princípio, o álibi de que as contas e os valores eram titularizados por trustsou off-shore é bastante questionável, já que aparentam ser apenas empresas de papel, sem existência física ou real”. Isso é apenas mais um sintoma dos inúmeros pré-julgamentos feitos.

Tal problema evidencia, vez mais, a imprescindibilidade de adotarmos a figura do “juiz de garantias” (ou o nome que preferirem, para fugir do rótulo “garantias”, quem sabe ‘juiz da investigação’, como usam os italianos). É inadmissível que um juiz tenha intensa atuação na fase pré-processual (inclusive decretando prisão preventiva, busca e apreensão, interceptação telefônica etc.) e depois, no processo, vá julgar. Já cansamos de discutir[1] o problema da prevenção como causa de fixação da competência, quando os processos penais europeus há décadas já comprovaram o acerto e adotaram a regra de ‘juiz prevento é juiz contaminado, que não pode julgar’. Mais recente, os estudos acerca da “Teoria da Dissonância Cognitiva” aplicada ao processo penal por Schünemann[2], reforçam essa afirmação. Existe uma clara antecipação do juízo condenatório que extrapola o fumus commissi delicti. Só por isso, já é ilegal. Futuro julgamento, pelo mesmo juiz, é puro golpe de cena processual, pois o investigado já está condenado.

Mas para decretarmos uma preventiva, não basta o fumus comissi delicti(que no caso está exaustivamente e até excessivamente demonstrado) é preciso comprovar sua real necessidade, ou seja, o periculum libertatis. Qualquer que seja o fundamento da prisão, é imprescindível a existência de prova razoável do alegado periculum libertatis, não bastando presunções ou ilações para a decretação da prisão preventiva. O perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado deve ser real, com um suporte fático e probatório suficiente para legitimar tão gravosa medida. Toda decisão determinando a prisão do sujeito passivo deve estar calcada em um fundado temor, jamais fruto de ilações ou criações fantasmagóricas de fuga (ou de qualquer dos outros perigos). Deve‑se apresentar um fato claro, determinado, que justifique o periculum libertatis.

Mas é necessário ainda que o perigo seja atual, presente. Eis mais um dos vícios do decreto. O que se vê na decisão é a invocação de perigos “passados”, supostamente existentes enquanto Cunha era parlamentar e a partir dessa situação. A rigor, falta a ‘atualidade do perigo’, elemento fundante da natureza cautelar. Prisão preventiva é ‘situacional’ (provisionais), ou seja, tutelam uma situação fática presente, um risco atual. No RHC 67.534/RJ, o ministro Sebastião Reis Junior afirma a necessidade de “atualidade e contemporaneidade dos fatos”. No HC 126.815/MG, o ministro Marco Aurélio utilizou a necessidade de “análise atual do risco que funda a medida gravosa”. Isso é o reconhecimento do Princípio da Atualidade do perigo.

É imprescindível um juízo sério, desapaixonado e, acima de tudo, calcado na prova existente nos autos. A decisão que decreta a prisão preventiva deve conter uma fundamentação de qualidade e adequada ao caráter cautelar. Deve o juiz demonstrar, com base na prova trazida aos autos, a probabilidade e atualidade do periculum libertatis.

Quanto ao risco para a ordem pública, inicialmente há que se reconhecer que se trata de um curinga hermenêutico, uma cláusula genérica, de conteúdo vago, impreciso e indeterminado, que sofre de uma ‘anemia semântica’ (Alexandre Morais da Rosa). Dada sua vagueza, vai encontrar preenchimento naquilo que quiser o juiz. No caso em tela, foi o ‘risco de reiteração’. Além de ser um exercício de futurologia, quase mediúnico, é impossível de ser refutado.

Como provar que amanhã não cometerei um crime? Ninguém, nem mesmo o juiz pode fazer essa afirmação. Muito menos prova disso. Por ser um argumento não passível de comprovação, não é possível a refutação, sendo assim substancialmente inconstitucional. Como se defender e fazer um contraditório efetivo em relação à risco futuro, vago, incerto e não refutável (porque não comprovável)?

Mas essa prisão preventiva também viola a excepcionalidade das prisões cautelares, a começar pelo fato de que ela não é a ultima ratio, senão a prima ratio. Não foram enfrentas as cautelares diversas, previstas nos artigos 319 e 320 do CPP. Neste sentido o artigo 282, parágrafo 6º é muito claro:

Art. 282.  As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se a:

6o A prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar (art. 319).

Medidas como proibição de contato e aproximação (em relação a testemunhas), proibição de afastar-se da comarca cumulada com dever de comparecimento periódico, recolhimento noturno e monitoramente eletrônico acabam com o suposto (exercício de futurologia perigosista) risco de fuga. Enfim, medidas alternativas eficazes existem de sobra, basta querer utilizar e abandonar a prática autoritária de prisão cautelar para tudo e sem fundamento concreto. Especula-se que tal prisão seria para forçar uma delação, com evidente constrangimento situacional, mas não é apontado na decisão (e talvez nunca o fosse

Dessarte, a prisão preventiva somente pode ser decretada quando inadequadas e insuficientes as medidas cautelares diversas, aplicadas de forma isolada ou cumulativa. Deveria o juiz ter afastado todas as possibilidades de eficácia das medidas cautelares diversas para, somente então, como último e derradeiro instrumento processual, lançar mão da prisão cautelar. No decreto de prisão encontra-se uma única referência a essa questão: “154. Pelos mesmos motivos, não se vislumbra como medida cautelar alternativa poderia substituir com eficácia a prisão preventiva.” É o que temos como fundamento, per relationem a si mesmo, numa circularidade vazia, retórica.

Ao que tudo indica, mais uma prisão do processo penal do espetáculo, aproveitando que já está chancelado que esse é um ‘processo de exceção’, não submetido as regras do devido processo penal…

O problema é as coisas não podem ser assim. As regras do devido processo penal não se aplicam só para quem gostamos ou a la carte, conforme a conveniência do freguês. Elas servem e devem ser respeitadas em relação a todos, gostemos ou não. Enfim, seja Eduardo Cunha ou qualquer outro investigado/acusado, deve responder pelo que efetivamente fez e, se ao final for condenado, deverá cumprir sua respectiva pena. Mas prisão cautelar sem necessidade real e concreta é ilegal, seja para o Cunha, o João da Silva, vocês ou eu. É disso que se trata.

[1] Especialmente nas nossas obra “Direito Processual Penal” e “Investigação Preliminar”, ambas publicadas pela Editora Saraiva. Também aqui na CONJUR: http://www.conjur.com.br/2014-nov-28/limite-penal-quem-julgar-futuro-processo-operacao-lava-jato

[2] http://www.conjur.com.br/2014-jul-11/limite-penal-dissonancia-cognitiva-imparcialidade-juiz

Aury Lopes Jr é doutor em Direito Processual Penal, professor titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.

Revista Consultor Jurídico, 28 de outubro de 2016, 8h01

http://www.conjur.com.br/2016-out-28/limite-penal-prisao-preventiva-alem-gostarmos-ou-nao-eduardo-cunha

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